Folha de S.Paulo

Os últimos dias de Trump

Estamos diante de um espetáculo constrange­dor: o presidente dos EUA pirou

- Elio Gaspari Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralad­a”

Em julho de 2016, o bilionário Michael Bloomberg disse durante a convenção do Partido Democrata que “eu reconheço um vigarista quando o vejo”. Referia-se a Donald Trump. Passaram-se quatro anos e a questão da vigarice do doutor foi para a mesa da procurador­a-geral do estado de Nova York.

Em Washington, a questão tornou-se outra: a eventual aplicação do dispositiv­o constituci­onal que permite empossar o vice caso o titular esteja incapacita­do. Quando essa emenda foi aprovada pensava-se num cenário no qual o presidente está sob intensos cuidados médicos. No espetáculo da série “Os Últimos Dias de Trump”, a invocação do dispositiv­o nada tem a ver com uma anestesia geral, por exemplo. Trata-se de incapacida­de por maluquice.

Trump é visto como um narcisista psicótico por muita gente que não gosta dele. Em julho passado, sua sobrinha Mary (psicóloga) publicou um livro com o subtítulo de “O Homem mais Perigoso do Mundo”. Parecia futrica familiar.

Desde novembro, Trump sustenta que venceu a eleição “de lavada”. Na terça-feira, os candidatos republican­os perderam a eleição na Geórgia. No dia seguinte, seus guardiões fizeram o que fizeram. (“We love you”, disse Trump.) Os senadores e deputados americanos foram obrigados a deixar o prédio. Numa decisão histórica, voltaram aos plenários horas depois. Na quinta-feira, confirmara­m o resultado eleitoral. A senadora republican­a que perdeu a cadeira tirou sua assinatura do pedido de recontagem dos votos da eleição presidenci­al na Geórgia. Duas integrante­s do primeiro escalão de seu governo foram-se embora e seu fiel ex-procurador-geral acusa-o de ter traído o cargo.

O mundo está diante de um espetáculo constrange­dor: o presidente dos Estados Unidos pirou. Isso só acontecia em filmes ruins. Desde o dia em que tomou posse, garantindo que ela foi assistida por uma multidão jamais vista, estava no tabuleiro a carta de que se tratava de um mentiroso. Quatro anos depois, com o seu negativism­o eleitoral e a mobilizaçã­o de seus seguidores para a invasão do Capitólio, Trump encarna o personagem do teatrólogo Plínio Marcos em “Dois Perdidos numa Noite Suja”: “Sou o Paco Maluco, o perigoso”.

A série “Últimos Dias de Trump” não terminou. Se ele queria ir jogar golfe na Escócia no dia da posse de Joe Biden, deve buscar outro pouso. A primeira-ministra Nicola Sturgeon disse que lá o doutor não entra, pois o país está em lockdown.

Faltam dez dias para o fim da série e Trump ainda surpreende­rá a plateia. A Associação Americana de Psiquiatri­a continua funcionand­o, com sede a poucos minutos da Casa Branca. Isso porque malucos existem. no sótão. Tudo bem até a hora em que ele assinou a ficha: “Ulysses S. Grant”.

Na cena da rendição dos rebeldes numa casa de Appomattox havia dois comandante­s. Um chegou num bonito cavalo, com faixa na cintura e espada com punho de ouro cinzelado. O outro, com o uniforme amarfanhad­o (havia quatro dias não o trocava) e as botas enlameadas. O bonitão era Robert Lee, que estava se rendendo e pedindo comida para seus soldados.

Desde jovem, quando participou da invasão do México, Grant impression­ava pela sua capacidade de manter o sangue-frio nos piores momentos de uma batalha e diante do massacre de suas tropas. (Isso numa pessoa que tinha horror a carne malpassada pelo que viu no curtume de seu pai.)

Quanto maior a confusão, maior era a calma de Grant. Sua figura no meio da anarquia dos guardiões de Trump foi mais uma homenagem ao general que botou os escravocra­tas do Sul de joelhos.

Grant foi eleito presidente e governou de 1869 a 1877. Um desastre. O general meteu-se com o papelório e no fim da vida estava quebrado. Pagou suas contas escrevendo um livro de memórias. Ele e a mulher estão sepultados num mausoléu em Nova York, na altura da rua 122. O balcão de perfumes do Bloomingda­le’s recebe mais fregueses em um mês do que a tumba do casal em um século.

Eremildo, o idiota Eremildo é um idiota, encantado com o legado da Olimpíada de 2016 e com o desenvolvi­mento imobiliári­o gerado pelo Porto Maravilha. O cretino adorou a ideia do prefeito Eduardo Paes de convocar um plebiscito para decidir o que fazer com a falecida ciclovia Tim Maia.

Eremildo propõe que no plebiscito sejam feitas mais duas perguntas:

Quem foi o responsáve­l pelo desastre que matou duas pessoas e torrou R$ 45 milhões?

A prefeitura não tem mais o que fazer?

Baleia Rossi

O pelotão palaciano acordou para a possibilid­ade de o deputado Baleia Rossi ganhar a presidênci­a da Câmara dos Deputados.

Mayrink, um artista Gustavo Mayrink colocou um tesouro na rede. É o site “Geraldo Mayrink”, com dezenas de textos de seu pai, falecido em 2009, depois de mais de 40 anos de atividade jornalísti­ca.

Ele falava calado e escrevia como poucos.

As quatro primeiras frases de seu perfil do jogador Garrincha entraram para a história da maestria jornalísti­ca:

“Suas pernas formavam um arco. A esquerda, em que a deformação era mais notável, tinha seis centímetro­s mais que a outra. Já era um milagre que andasse. Inadmissív­el que jogasse futebol”.

Num tempo de más notícias, os textos de Geraldo Mayrink permitem um reencontro com a alegria de seus leitores.

Notas incorretas

No vídeo que mostra os guardiões de Trump no salão que fica debaixo da cúpula do Capitólio, eles se comportara­m como respeitoso­s visitantes de um museu.

O vídeo que mostra o tiro dado por um policial na manifestan­te que estava do outro lado de uma porta, matando-a, foi coisa de seguidor do governador afastado Wilson Witzel.

(Em tempo: se os trumpistas de Washington fossem negros, os mortos da quarta-feira teriam passado da dezena.)

Macaco fora do galho

No dia em que o Brasil bateu a marca dos 200 mil mortos pela Covid, Bolsonaro avisou que, se o Brasil não usar o sistema de voto impresso, terá os mesmos problemas que aqueles criados por Trump nos Estados Unidos.

Tudo bem. Seria o caso de ele combinar que na próxima epidemia o presidente do Tribunal Superior Eleitoral acumulará o cargo com o de ministro da Saúde. Certamente ele não falará em cloroquina, “gripezinha” nem “conversinh­a” de segunda onda.

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Juliana Freire

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