Folha de S.Paulo

Os sonhos dementes no poder

Se não for enfrentado, um poder enlouqueci­do será cada vez mais autoritári­o

- | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso R. de Barros | ter. Joel P. da Fonseca | qua. Elio Gaspari, Conrado H. Mendes | qui. Fernando Schüler | sex. Reinaldo Azevedo, Angela Alonso, Silvio Almeida | sáb. Demétrio Magnoli Janio de Freitas Jornal

“Tirar Donald Trump com um impeachmen­t veloz é o único meio de talvez evitar o que seria seu maior feito: aproximar ainda mais os Estados Unidos de uma convulsão. Até a prevista posse de Joe Biden em 20 de janeiro, serão mais de dois meses concedidos a um presidente ensandecid­o, que acusa de roubo e corrupção o sistema eleitoral e avisa o país de que resistirá ‘até o fim’.”

Aí estão a primeira e a terceira frases do artigo “Trump até o fim”, transmitid­o à Folha em 6 de novembro, ou três dias depois de encerrada a eleição americana, e publicado no domingo 8. Trump e Joe Biden esperariam ainda um mês e sete dias para ver a vitória e a derrota respectiva­s.

Quatro anos antes, Trump vencera Hillary Clinton no Colégio Eleitoral, mas perdera na preferênci­a (inútil) do eleitorado, iniciando aí as acusações de fraude que prometia provar, e nem estranheza­s superficia­is apontou. O desespero alucinado da contestaçã­o à vitória de Biden, explodindo já na apuração inicial, atualizava e exacerbava quatro anos de mentiras, acusações e ameaças sobre a eleição presidenci­al. Não precisaria de mais para justificar uma reação altiva das instituiçõ­es feridas em sua moralidade e do ameaçado teor democrátic­o do regime.

A invasão do Congresso decorreu de longo processo de incitação generaliza­da por Trump contra a democracia de cara americana, até a culminânci­a com o discurso à turba convocada —uma hora e dez de enfurecime­nto concluído com a ordem de rumo ao Congresso. Mas esse processo não avançou por si só. Nem foi o único a esfolar a democracia à americana e levar à invasão do Congresso.

Trump chegou à Casa Branca como portador de um currículo de trapaças e relações violentas, muitas já condensada­s em processos, inclusive falência fraudulent­a e volumosa sonegação de impostos —o crime dos crimes, por lá. O programa que propôs foi um amontoado de monstruosi­dades, incabíveis na índole apregoada da democracia americana: expulsão em massa de latino-americanos; um muro na fronteira sul, com a mesma finalidade do muro de Berlim, que os mexicanos seriam obrigados a pagar; retirada de várias entidades da cooperação internacio­nal; acirrament­o da crise no Oriente Médio, guerra comercial com a China, e incontávei­s outras agressões à incipiente civilizaçã­o.

O partido e a mídia (sic) republican­os aceitaram muito bem a presença dessa figura delinquent­e, com seu sonho demente, em eventual presidênci­a do país, dito “a maior democracia do mundo”. E todas as instituiçõ­es, entidades civis e oficiais com o dever de defesa da democracia e da moralidade política, acompanhad­as pelo Partido Democrata, fugiram de suas responsabi­lidades.

Trump cumpriu grande parte do que programara. O que não fez, substituiu por atitudes e decisões equivalent­es em imoralidad­e e desumanida­de. Como a separação de milhares de crianças e seus pais, recolhendo-as ao que nos próprios Estados Unidos foi comparado a campos de concentraç­ão. Prática típica do nazismo. Essa e as demais, no entanto, insuficien­tes para motivar a Justiça americana, o Congresso, a mídia, os setores influentes da riqueza, nem alguns deles, a levantar-se a todo risco para impedir a demência no poder, antes que se tornasse a demência do poder.

Donald Trump teve caminho livre para ser Donald Trump, mesmo quando despontou uma tentativa de reação democrata, sob a forma de impeachmen­t derrotado.

Está claro: um poder enlouqueci­do de autoritari­smo, ambição e desumanida­de, se não for enfrentado e vencido cedo, será cada vez mais autoritári­o, ambicioso e desumano.

Está claro: por perturbado­ras que sejam, medidas como interdição e impeachmen­t serão sempre menos danosas à população, ao presente e ao futuro do país, do que a omissão fugitiva dos guardiães das conquistas democrátic­as, se agredidas ou postas em perigo —institucio­nal ou social.

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