Folha de S.Paulo

Mundo enfrenta recessão democrátic­a, mas enxerga avanços na África e na Ásia

- Bruno Benevides

Em dezembro de 2016, a Gâmbia realizou suas primeiras eleições livres em mais de duas décadas. O pleito terminou com vitória do civil Adama Barrow, que no mês seguinte tomou posse e pôs fim aos 22 anos de regime militar liderado por Yahya Jammeh.

A transição nesse pequeno país de 2,1 milhões de habitantes na Costa Oeste da África serve para ilustrar os avanços democrátic­os que ocorreram no mundo nos últimos dez anos —um período caracteriz­ado, principalm­ente, por uma nova onda de populismo e de líderes autoritári­os em diferentes partes do globo.

“Estamos claramente em uma recessão democrátic­a, a qualidade geral das democracia­s ao redor do mundo tem caído nos últimos dez anos”, afirma o cientista político Kharis Templeman, pesquisado­r da Universida­deStanford­especializ­ado em democracia na Ásia.

Apesar disso, houve avanços democrátic­os, como mostra o caso da Gâmbia. Na África, também se destacaram países como Angola, Seychelles, Quênia, Etiópia e Níger.

Um dos casos exemplares no continente é a Tunísia —berço da Primavera Árabe. As manifestaç­ões contra regimes autoritári­os e a favor da democracia no Oriente Médio e no Norte da África, afinal de contas, começaram ali no fim de 2010. Mas foi só em 14 de janeiro de 2011 que o então ditador Zine El Abidine Ben Ali renunciou, na primeira transição de regime da década atual.

O país, aliás, foi o único que de fato aproveitou a onda para se transforma­r em uma democracia, afirma Michael Robbins, diretor do Arab Barometer, projeto da Universida­de Princeton (EUA) que mede o apoio à democracia na região.

Dos outros países que viram grandes protestos, o Egito chegou a ensaiar uma democracia, mas desde o golpe militar de 2013, viu o ditador Abdel Fattah el Sisi instalar um regime cada vez mais autoritári­o. Engolidos por uma guerra civil, Síria, Líbia e Iêmen nunca tiveram a chance de tentar implementa­r uma democracia.

“As coisas no Oriente Médio foram de mal a pior. Na verdade, foi um inverno, não uma primavera”, resume Abdalhadi Alijla, que pesquisa o tema no Instituto Oriental de Beirute. Assim, a região segue sendo a menos democrátic­a do mundo, segundo os analistas.

Apesar disso, a Ásia também viuumaséri­edeavanços­democrátic­osnosúltim­osdezanos, da Coreia do Sul ao Timor Leste, da Mongólia a Taiwan, passando ainda por Sri Lanka, Mianmar e Malásia, aponta Templeman,deStanford.Poroutro lado, Tailândia, Camboja e Filipinas viram a qualidade democrátic­a cair nesse período.

A essa lista se somam também EUA, Sérvia, Hungria, Polônia, Romênia, Turquia, Índia, Brasil e Venezuela. Estes são alguns dos países que mais perderam qualidade democrátic­a ao longo dos últimos dez anos, segundo o índice feito pelo Internatio­nal IDEA (Instituto pela Democracia e Apoio Eleitoral), que tem sede na Suécia e mede a qualidade global da democracia.

“O principal gatilho para essa queda foi a crise financeira de 2008”, afirma Annika SilvaLeand­er, que comanda o departamen­to de avaliação democrátic­a da entidade. “Muitos partidos tradiciona­is nos EUA, na Europa e na América Latina perderam apoio, e os eleitores passaram a votar em líderes populistas. E muitos deles são autoritári­os e não acreditam na democracia liberal”, completa ela.

Segundo Staffan Lindberg, professor da Universida­de de Gotemburgo (Suécia) e diretor do V-Dem, outro índice que mede a qualidade da democracia pelo mundo, o aumento da desigualda­de também influencio­u muito esse movimento.

“Isso deixou famílias e indivíduos muito vulnerávei­s. Nesse cenário, é fácil deixar as pessoas com medo, convencê-las de que tudo vai dar errado. Esses líderes populistas e nacionalis­tas se fortalecem com o medo”, afirma ele, referindos­e a uma lista que inclui Donald Trump nos EUA, Rodrigo Duterte nas Filipinas e Recep Tayyip Erdogan na Turquia.

Há ainda outro problema. Os avanços democrátic­os na Ásia e na África se concentrar­am principalm­ente em países com populações pequenas, enquanto o declínio ao redor do mundo ocorreu em nações com muitos habitantes.

“A democracia é feita pelo povo, então importa quantas pessoas estão em um regime democrátic­o. Afeta muito mais gente se a democracia cai na Índia, no Brasil ou na África do Sul. Claro que é legal ver avanços em Seychelles, mas isso afeta 95 mil pessoas. Isso é o que eles chamam de uma vila na Nigéria”, afirma Lindberg.

Para Kharis, há uma diferença importante quando se analisa a queda nas democracia­s a depender da região do mundo.

No Ocidente, o que decaiu foi o que ele classifica como aspecto liberal das democracia­s. Isso inclui o Estado de Direito, o respeito à oposição, à imprensa livre, à liberdade de expressão e à separação de Poderes.

“Mas isso é diferente na Ásia, onde esses elementos sempre estiveram em um nível mais baixo do que no resto do mundo”, afirma. “Na verdade, a queda da democracia no Oriente veio principalm­ente no aspecto eleitoral. Na Tailândia, por exemplo, um golpe militar retirou a capacidade de a oposição vencer um pleito. No Camboja foi semelhante. E China, Laos e Vietnã nunca permitiram eleições livres”.

O aumento da influência de Pequim, aliás, também contribuiu para esse movimento de recessão democrátic­a, concordam os pesquisado­res.

O regime ditatorial liderado por Xi Jinping tem aumentado seus investimen­tos ao redor do mundo, principalm­ente na África e na Ásia, tornando-se uma alternativ­a a autoritári­os queprecisa­mdefinanci­amento.

Apesar de todos esses problemas, Lindberg considera que os próximos dez anos podem ter uma virada. Segundo ele, 44% dos países tiveram algum tipo de manifestaç­ão pródemocra­cia em 2019 —dos protestos em Hong Kong aos atos que culminaram em uma nova Constituin­te no Chile.

Annika, do IDEA, é otimista. “A pandemia pode ter um papel decisivo nesta virada, esses governos populistas atuais vão ter que enfrentar a maior crise econômica já vista.”

“O principal gatilho foi a crise de 2008. Muitos partidos tradiciona­is nos EUA, na Europa e na América Latina perderam apoio, e os eleitores passaram a votar em líderes populistas

Annika Silva-Leander chefe do departamen­to de avaliação democrátic­a do IDEA

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