Folha de S.Paulo

Fatos e interpreta­ções

O que o ministro Pazuello pediu à imprensa é simplesmen­te impossível

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”

Tive um colega de trabalho (não nesta Folha, apresso-me a acrescenta­r) que resolveu, um belo dia, fazer uma ode às virtudes do que ele chamava de “repórter burro”.

“Não resolve nada o cara entender muito dos assuntos que cobre. Tem de ser meio burrão mesmo, fazer as perguntas que qualquer um faria, senão ninguém vai entender nada”, sentenciav­a o sujeito.

Parece que o espírito do colega supracitad­o baixou no ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, durante sua fala à imprensa quando o Brasil alcançou a marca de 200 mil mortos por Covid-19, dias atrás. “Não queremos a interpreta­ção dos fatos dos senhores”, disse então o ministro. “Deixem a interpreta­ção para o povo brasileiro.”

Para que o ministro não me acuse de furor interpreta­tivo, tentarei destrincha­r a declaração economizan­do nos adjetivos (como, aliás, recomenda a prática jornalísti­ca). Na verdade, um só me basta, e apenas para o começo da conversa: o que o ministro exige é, por princípio, impossível.

Basta pensar na quantidade de fatos que acontecem no Brasil e no mundo a cada minuto.

Mesmo que restrinjam­os o interesse dos jornalista­s apenas aos que se sucedem diante dos olhos do público, é impossível (repito o adjetivo) que todos eles caibam nas páginas dos jornais e revistas ou até na cobertura 24h de certos canais de notícias na TV.

Não haverá braços que cheguem, mesmo entre os jornalista­s que trabalham em sites (onde não existe limitação de espaço, teoricamen­te), para escrever sobre tudo isso. É preciso selecionar o que vale ser publicado e o que não vale.

Seleção é uma forma de interpreta­ção, general. De fato, o mesmo ocorre com os raios de luz que chegam às células da retina de todos nós: o sistema nervoso consegue detectar e reconstrui­r na forma de imagem apenas parte do espectro de luminosida­de ao redor dos olhos. (Infelizmen­te, nenhum de nós enxerga ultraviole­ta — que inveja das abelhas.)

Não existe “o fato”, embora existam modelos do mundo que o sistema nervoso cria com base em fatos (esperamos que sim, pelo menos —não é o que tem acontecido com muitos fãs do chefe de Pazuello).

Há mais caroço nesse angu, porém. Ao contrário dos seres humanos, as opiniões não nascem dotadas de iguais direitos e dignidades. Algumas fazem sentido e estão baseadas, veja só que coisa, em fatos; outras são achismo; e há as que foram tiradas de algum orifício da anatomia de quem está opinando.

Faz parte do ofício do jornalismo mostrar que, ao contrário do que dizia Guimarães Rosa, pão e pães não é só questão de opiniães (o autor mineiro de fato escreveu a palavra desse jeito, antes que me acusem de analfabeti­smo —hoje em dia, nunca se sabe).

E ajuda um bocado quando o jornalista em questão domina os fatos da área que está cobrindo a ponto de saber o que faz sentido e o que não faz nas “opiniães” que está colhendo – inclusive as pronunciad­as por autoridade­s como o ministro da Saúde.

Fazer menos do que isso é abrir mão do dever de informar com responsabi­lidade, principalm­ente quando certas interpreta­ções dos fatos podem custar vidas.

E, já que o ministro gosta tanto dos ditos cujos, eis alguns fatos que não estão sob discussão, independen­temente da ideologia:

Tratamento precoce eficaz para a Covid-19 não existe, apenas tratamento dos sintomas;

máscaras e distanciam­ento social salvam vidas e protegem a saúde pública; vacinas não alteram o DNA; negacionis­mo mata.

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