Folha de S.Paulo

Capitólio, genocídio e Fanta Uva

Trump não entende que o presidente não é o dono do playground, mas o zelador

- Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”

O ônibus 422 parou na rua do Catete, Rio de Janeiro. Meu amigo João tirou o olho do livro e deu uma espiada pela janela, pra ver se já era o seu ponto. Não era. Nem o dele nem o de ninguém. O motorista desceu e entrou numa padaria.

Uns minutos depois, ele voltou e berrou pro cobrador: “Ô, Nélio: e de refresco, tu quer o quê?!”. Mais um tempo e o motora chega com dois pastéis e uma Fanta Uva 2 litros —pro Nélio.

Esse evento aparenteme­nte irrisório na história da humanidade explica a invasão do Capitólio, nos EUA e a morte de pretos e pretas nas periferias brasileira­s tão bem quanto “Como as democracia­s morrem” ou “Como as democracia­s chegam ao fim”. (Estar na vanguarda do atraso tem dessas vantagens: a gente pega o bonde descarrila­do andando e pode sentar na janelinha).

O motorista e o cobrador não compreende­m que estão a serviço dos passageiro­s, num veículo a serviço da cidade. Privatizam o público como Bolsonaro

instrument­aliza a PF e a Abin para limpar a bunda suja do filho criminoso. Ou como Trump, o bebê mais poderoso da Terra, incapaz de entender que o presidente da República não é o dono do playground, mas o zelador. Na hora de sair ele se recusa, senta-se na gangorra e deixa o país inteiro suspenso lá no alto, apavorado.

Desde quarta, na CNN americana, os âncoras Chris Cuomo e Don Lemon repetem ininterrup­tamente que, diante da invasão do Capitólio, quem se pergunta “como isso foi possível?!” ou passou os últimos quatro anos assistindo à “Ilha da Fantasia” ou, mais provavelme­nte, é mal-intenciona­do. (A mesma turma que, no Brasil, faz vista grossa pra assassinat­o de pobre e derrubada da Amazônia, contanto que se aqueça a economia).

Trump está desde as primárias dizendo claramente que vai usar o seu poder para destruir a democracia, aumentar a cisão social e levar os EUA de volta aos dias gloriosos em que John Wayne matava os índios e os pretos sabiam o seu lugar. Foi eleito com esta plataforma, com apoio da Ku Klux Klan. Assim como Bolsonaro, com o apoio dos milicianos. Os dois passam os dias botando fogo no mundo e as noites postando as selfies ao lado das chamas. Vez por outra, pra aliviar a culpa dos cúmplices, postam uma fotinho fantasiado­s de bombeiros.

Conrado Hubner, Celso Rocha de Barros, Ilona Zsabó, Reinaldo Azevedo, Steven Levistky, David Ranciman, Max Weber, Hannah Arendt, Montesquie­u, Platão, Zeus, Xangô, por favor, me expliquem: por que cazzo quem rouba um pote de xampu vai pra cadeia e dois genocidas que trabalham contra as medidas sanitárias na maior pandemia em cem anos, facilitand­o a morte de meio milhão de pessoas, comem, dormem e delínquem com o nosso dinheiro? Por que a gestante que interrompe a gravidez é criminosa e estes dois canalhas que condenam à morte gerações e gerações pelos efeitos catastrófi­cos do aqueciment­o global vivem em palácios, servidos por garçons, com bandejas de prata, “pegando as mulheres pelas b ***** !” ou “comendo gente” com o dinheiro que falta no SUS?

O mundo tá muito errado. Na raiz. Isto não tem nada a ver com direita ou com esquerda. O buraco é quilômetro­s mais embaixo. O republican­o Mitt Romney e o psolista Marcelo Freixo estão do mesmo lado, assim como Jair Bolsonaro e Nicolás Maduro estão do outro.

“Caminho por uma rua que passa em muitos países” (...) “Minha vida, nossas vidas/ formam um só diamante”. Precisamos urgentemen­te compor “uma canção/ Que faça acordar os homens/ E adormecer as crianças”.

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Adams Carvalho

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