Adiamento se soma a controvérsias do Grammy
Postergado pela Covid-19, prêmio trocou de comando e abandonou termo ‘urbano’, mas continua na mira de artistas
A cerimônia do Grammy 2021 foi adiada menos de quatro semanas antes da data para a qual estava marcada originalmente, dia 31 de janeiro, e agora será no dia 14 de março.
A própria divulgação do adiamento, noticiada pela revista Rolling Stone e confirmada horas depois pela organização, demonstra a confusão em que se encontra a premiação.
A razão para postergar a cerimônia é o crescimento dos casos de Covid-19 em Los Angeles. A premiação de 2021 será feita só com artistas e apresentadores, sem convidados.
O adiamento se soma a uma série de reclamações de artistas e críticos, que parecem aumentar a cada mês que passa.
Mais do que a próxima edição da premiação, as críticas ao Grammy, na verdade, vêm se tornando a tônica nos últimos anos, enquanto os novos organizadores do prêmio —o mais importante da indústria fonográfica— penam para manter sua credibilidade.
Ken Ehrlich, que produziu a premiação por quatro décadas, abriu mão da posição no ano passado. O novo comandante, Ben Winston —que trabalhou com James Corden —, promete uma revolução.
No ano passado, a transmissão do Grammy no canal americano CBS foi vista por 18,7 milhões de pessoas. Foi a menor audiência em 12 anos.
Entre o fim de 2019 e o começo de 2020, Deborah Dugan assumiu e foi retirada da presidência da Academia de Gravação, instituição que organiza o Grammy. Ela trabalhou para rejuvenescer a premiação —que em 2020 consagrou Billie Eilish, então com 18 anos—, mas saiu do cargo dez dias antes da cerimônia, dizendo ter sido retaliada por revelar escândalos de abuso sexual, irregularidades na votação e conflitos de interesse.
The Weeknd, que num ano atípico teve um disco muito bem recebido —tanto pelo público quanto pela crítica— é o grande algoz da vez. Seu álbum lançado em 2020, “After Hours”, foi esnobado em todas as 84 categorias, e ele chamou a Academia de corrupta.
Outros artistas fizeram coro. “Acho que deveríamos parar de nos chocar todo ano com a desconexão entre as músicas que impactaram e esses prêmios, e apenas aceitar que, o que uma vez foi a maior forma de reconhecimento talvez não tenha mais importância para os artistas de agora e para os que virão depois”, escreveu Drake, que foi provavelmente o músico mais ouvido do mundo na última década.
No Twitter, Nicki Minaj endossou. “Nunca se esqueçam que o Grammy não me deu meu prêmio de artista revelação quando eu tinha sete músicas simultaneamente na Billboard. Eles o deram ao homem branco Bon Iver.”
Segundo Elton John, a canção “Blinding Lights”, de The Weeknd, merecia ganhar como música e gravação do ano.
Fiona Apple, queridinha da crítica e cujo disco “Fetch the Bolt Cutters” rendeu a ela três indicações, também falou mal do Grammy em entrevista ao jornal The Guardian.
Ela não aceitou a indicação de Dr. Luke, acusado por Kesha de assédio sexual —o que ele nega—, a produtor do ano pelo trabalho com Doja Cat.
Também falou sobre a saída de Dugan. “Há muitas coisas que ela trouxe à tona e que fazem com que seja impossível para mim ignorar a situação. E eu realmente não quero ir até lá e apoiar [a cerimônia].”
Recentemente, três dos cinco indicados ao melhor álbum infantil recusaram suas nomeações em protesto pela ausência de negros na categoria.
O cantor Alastair Moock e as bandas Okee Dokee Brothers e Dog on Fleas disseram, em carta, que “não poderiam, em sã consciência, se beneficiar de um processo que historicamente negligenciou as mulheres e artistas negros”.
Artistas de hip-hop se queixam há décadas. Em 2019, Childish Gambino, premiado em quatro categorias, não foi à cerimônia —Drake apareceu, mas criticou o prêmio e teve o microfone cortado.
Kendrick Lamar boicotou naquele ano. Frank Ocean — quase unanimidade para a crítica americana— nem sequer inscreveu os seus discos.
No ano passado, Tyler, the Creator, que ganhou o melhor disco de rap, saiu da cerimônia dizendo —com razão— que seu álbum “Igor” misturava gêneros, e que o relegar à categoria configurava racismo.
Anos antes, Drake disse o mesmo, quando recebeu um prêmio de rap por “Hotline Bling”, considerada por ele — com razão— uma canção pop.
Tais reclamações fizeram a Academia abandonar o uso de termo genérico “urbano” para categorizar discos ou músicas. Harvey Mason Jr., atual presidente da Academia, citou “um novo capítulo em nossa história”. “Estamos ouvindo e aprendendo através dos nossos parceiros, constituintes e acionistas. Estamos tentando garantir que estejamos aptos a mudar e adaptar. E queremos ser verdadeiramente inclusivos”, disse ele em 2020.
Até mesmo cantoras pop, como Ariana Grande e Taylor Swift, faltaram à cerimônia em anos mais recentes.
A primeira acusou censura em uma de suas performances e apareceu no ano seguinte cantando seu trap-festeiro de maneira pouco adequada com uma orquestra.
A segunda, que coleciona gramofones na carreira, se sentiu injustiçada no ano passado e, em 2021, retorna como uma das mais indicadas.
As queixas de mulheres e de artistas negros encontram fundamento nos números.
O caso de Beyoncé é exemplar. A artista mais indicada neste ano foi citada 79 vezes em categorias do Grammy, igualando Paul McCartney e atrás de Quincy Jones e Jay-Z, com 80 indicações cada um.
Ela ganhou 24 gramofones, mas a maioria em categorias menores. Já perdeu em disco do ano três vezes, em gravação do ano cinco, e em música do ano outras duas. A única vez que foi premiada numa das quatro categorias principais —que também incluem artista revelação— foi com “Single Ladies (Put a Ring on It)”, em música do ano.
Talvez a situação mais marcante tenha sido em 2015, quando Beck —com um disco pouquíssimo lembrado atualmente, “Morning Phase”— bateu um dos mais aclamados álbuns de Beyoncé, na categoria de disco do ano.
As reclamações se acumulam, e o Grammy tem uma tarefa ainda mais difícil para conseguir driblar as desconfianças. E isso vale não só para o público, mas para os artistas —que, cada vez menos dependentes das grandes gravadoras, são a matéria-prima tanto do prêmio quanto da própria indústria da música.