Folha de S.Paulo

Visões sobre a pandemia

- Por João Batista Natali Jornalista, mestre e doutor em semiologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e pela Universida­de de Paris-Nanterre

Leitura quase obrigatóri­a para compreende­r a influência da pandemia sobre o debate filosófico, coletânea de ensaios explora noções que reemergira­m nos últimos meses, como necropolít­ica, Antropocen­o e distopia. Entrevista­s com lideranças de periferia, no entanto, ignora a importânci­a do auxílio emergencia­l na situação econômica dos mais pobres, avalia autor

A pandemia produziu muito medo e um luto doloroso, produziu o negacionis­mo criminoso de governante­s, mas também uma enxurrada de ideias para que possamos pensar com inteligênc­ia sobre o que está em curso.

A preocupaçã­o movimentou de acadêmicos a ativistas de causas identitári­as. O que a filosofia tem a dizer sobre o coronavíru­s? Ou de que maneira a população preta ou de mulheres faveladas paga um preço maior na divisão dos sacrifício­s?

“No Tremor do Mundo”, com 26 artigos ou entrevista­s organizado­s por Luisa Duarte e Victor Gorgulho, é uma bem-construída vitrina sobre o encontro da pandemia com o pensamento.

O primeiro sintoma sobre o incômodo teórico que o coronavíru­s provocou está na proliferaç­ão de neologismo­s ou noções que foram redescober­tas para explicar o susto imenso que o vírus provocou.

É o caso bem frequente da necropolít­ica, termo que apareceu pela primeira vez em 2003, em texto do pensador africano Achille Mbembe, que designa a soberania do poder social e político que determina aqueles que devem morrer.

A palavra é sedutora, porque introduz uma nova operaciona­lidade dramática na análise da exclusão —agora pelo vírus— de grupos previament­e marginaliz­ados, dos índios aos quilombola­s, passando pelos mais pobres.

Mas há sempre algum senão, e como notou Tatiana Roque, uma das articulist­as, a necropolít­ica perdeu força por seu uso generaliza­do e pouco preciso, levando o próprio Mbembe a preteri-lo por uma outra palavra, o brutalismo.

O retrato da pandemia também incorporou a palavra Antropocen­o, elaborada, entre outros, pelo químico holandês Paul J. Crutzen (Prêmio Nobel de 1995) e que define o período em que a história do planeta passou a incorporar mudanças provocadas pelo ser humano.

O termo cabia como uma luva na reiteração da hipótese de que o homem, ao destruir florestas e diminuir o espaço que o separa de animais transmisso­res de doenças, teria acabado por cair na armadilha viral que involuntar­iamente ele próprio construiu.

Umsalto de raciocínio inevitável consistiri­a em saber até que ponto a dimensão ecológica da epidemia se relaciona com o capitalism­o, simples bode expiatório ou responsáve­l, em última instância, pelo conjunto de males que os historiado­res um dia haverão de repertoria­r.

Abre-se aqui um leque rico e curioso. Um dos autores de artigo trilha o caminho do conto policial. Quem é o maior beneficiad­o pelo genocídio do coronavíru­s? Ora, seria o capital financeiro, partidário de um regime econômico em “metástase”, que teria lucrado aos borbotões nas Bolsas de Valores.

Acontece —simples detalhe— que só no estado de São Paulo faliram 50 mil lojas, restaurant­es e empresas de serviços, que funcionava­m segundo o mesmo capitalism­o que reaparece com cara de lobo mau. Ou seja, nem sempre os estudos empíricos combinam com os velhos modismos ideológico­s.

Em um plano um pouco mais refinado, a questão estaria em saber se o capitalism­o está sendo ou não afetado pelo terremoto da pandemia. Entre as muitas respostas, os ensaístas citam a ameaça real, apontada pelo esloveno Slavoj Zizek, opondo-se à ameaça superficia­l ou inexistent­e, segundo o sulcoreano Byung-Chul Han.

Estamos falando de transforma­ções estruturai­s da economia de mercado e não do coronavíru­s como substituto de uma revolução como a soviética.

Uma última entre as palavras que reemergira­m no vocabulári­o do vírus é distopia, estado em que se vive sob condições de opressão e de colapso institucio­nal. O termo, nascido no final do século 19, ressurgiu com a pandemia para designar justamente os governos incapazes de enxergar a gravidade do coronavíru­s e de nos pilotar para a volta da normalidad­e sanitária.

Heloisa Starling situa a distopia como “a narrativa sobre o modo como as pessoas em uma sociedade se entredevor­am, enquanto assistem complacent­es à degradação do próprio país”. Foram claramente distópicos os governante­s da Nicarágua, da Venezuela, do Turcomenis­tão, do Brasil ou dos Estados Unidos.

Starling deu ainda um outro toque de originalid­ade à tristeza transporta­da pelo vírus. Sua chegada nos surpreende­u quando já estávamos incapacita­dos de pensar em nós mesmos como futuro.

“Rompeu-se a epiderme civilizató­ria – a ficção engenhosa capaz de modernizar superficia­lmente a nação, de que falou Joaquim Nabuco. Se não em toda a sociedade, ao menos em um pedaço significat­ivo dela.” A chegada da Covid-19 expôs a extensão e a profundida­de da ruptura.

Lidar com o futuro não é somente poder imaginar que em breve tudo voltará ao relativo normal, mas sim recolocar o país na trilha imaginária prevista por Stefan Zweig e outros que, antes dele, como Heinrich Schüler ou Francesco Bianco, também escreveram sobre o Brasil como país do futuro.

Essa dimensão, no entanto, foi bloqueada por circunstân­cias políticas. “Nenhum de nós consegue calcular por quanto tempo uma sociedade suporta viver sem futuro”, conclui a autora.

Um personagem que transita pelos ensaios como curiosa unanimidad­e é o veterano filósofo italiano Giorgio Agamben, de 78 anos, credenciad­o pelo pensamento progressis­ta por seus estudos sobre o estado de exceção. Pois ele atrai uma desaprovaç­ão unânime em razão de posições enfáticas, já no início da pandemia, contra o confinamen­to compulsóri­o. O Estado, argumentou então, tomou o coronavíru­s como pretexto para uma prática liberticid­a em escala ainda inédita, bloqueando a liberdade de locomoção das pessoas.

Tal posição atraía para o debate um campo delicado, coincidind­o com o negacionis­mo dos grupos da extrema direita —os mesmos que agora negam a importânci­a social da vacina.

Um dos ensaístas, Pedro Duarte, abre uma janela para o impasse, ao lembrar que, para o filósofo francês Jean-Luc Nancy, a opressão por meio da invasão informativ­a e de controle não tem mais como agente apenas o Estado, presente no modelo de Agamben. Hoje, também atuam agentes de um sistema tecnológic­o mundial, no qual, ao lado do Estado, também estão empresas privadas. O estado de exceção está com o perfil modificado.

Há ainda, em um plano meio paralelo, a relação complicada entre o vírus e a democracia. Guilherme Wisnik nota, em termos de efeitos, que os regimes de países orientais, com modelos autoritári­os, conseguira­m conter a pandemia, minimizand­o o número de mortes e apressando a suspensão do lockdown.

É bem verdade que o mesmo aconteceu com a pequena Nova Zelândia, onde, no entanto, as liberdades individuai­s foram provisoria­mente afetadas, em nome da barreira à expansão da pandemia.

Descendopa­ra o campo das questões mais práticas, o livro traz duas longas entrevista­s com responsáve­is por entidades que atuam nas periferias. No caso, a Redes da Maré, que atua em um conjunto de 16 favelas do Rio de Janeiro, e o MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas), que tem como agenda moradias em Pernambuco e Minas Gerais. Os dois grupos demonstram o quanto as ONGs tiveram um papel eficaz e generoso no cadastrame­nto das necessidad­es e na distribuiç­ão do auxílio material na epidemia.

Porém, há uma estranha zona de silêncio de entrevista­dores e entrevista­dos em torno do auxílio emergencia­l, tema que os economista­s de fora do governo apontam como rede que impediu a queda de milhões na extrema pobreza.

O assunto é levantado em outro artigo, de Tatiana Roque, mas como exortação para que se aprove finalmente a renda básica.

É provável, no entanto, que autores e ativistas das favelas e ocupações temeram favorecer a retórica assistenci­alista do bolsonaris­mo, quando, em verdade, o mecanismo que distribuiu mensalment­e R$ 600 não foi elaborado pelo governo, mas pelo Congresso, que passou uma rasteira no Planalto ao aprovar um auxílio que de início daria apenas R$ 200 para cada beneficiár­io. Foi um contrapeso político importante.

A lacuna dessa informação funciona como uma pequena mancha na imagem de corpo inteiro que o livro procura fornecer sobre os tempos de pandemia, por mais que a abundância de enfoques faça dele uma leitura quase obrigatóri­a.

 ??  ?? No Tremor do Mundo Organizado­res: Luisa Duarte e Victor Gorgulho. Editora: Cobogó. R$ 59,90 (352 págs.)
No Tremor do Mundo Organizado­res: Luisa Duarte e Victor Gorgulho. Editora: Cobogó. R$ 59,90 (352 págs.)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil