Folha de S.Paulo

O rosto iluminista da cleptocrac­ia

- Por Mathias Alencastro Pesquisado­r de pós-doutorado do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to), colunista da Folha e autor da tese ‘A Política dos Diamantes na Periferia Angolana: Lunda Colonial e Pós-colonial 1917-2002’

Sindika Dokolo, que foi casado com a mulher mais rica da África, tornou-se o maior negociador de arte do continente, levando artistas africanos aos círculos internacio­nais. Ao mesmo tempo, foi arrastado pelas revelações de desvios do Luanda Leaks. Autor diz que é preciso afastar caricatura de corrupto de país pobre e tratá-lo como personagem único do pós-colonialis­mo africano

Quando morreu em Dubai, em outubro passado, Sindika Dokolo vivia dias de sossego em um ano até então infernal. Em janeiro, a tempestade midiática e judiciária chamada Luanda Leaks abateu-se sob a sua família. As revelações sobre a sua esposa, Isabel dos Santos, estilhaçar­am a aura do casal, outrora tratado como realeza nos círculos financeiro­s da África e da Europa.

Ele e a sua família se refugiaram no emirado, conhecido por oferecer abrigo a bilionário­s com complicaçõ­es legais, antes de lá se instalarem indefinida­mente depois da explosão da pandemia em fevereiro. Apesar das contraried­ades, Dokolo podia se dedicar em liberdade às suas três paixões: os filhos, o mergulho submarino e a coleção de obras de arte.

Dokolo não era só o marido de Isabel dos Santos, filha de José Eduardo dos Santos, presidente de Angola entre 1979 e 2017, e mulher mais rica da África, que dizia, para os aplausos dos cínicos e o sarcasmo dos realistas, ter começado a sua fortuna vendendo ovos nas ruas de Luanda. Ele também era o maior marchand de arte africana.

Nascido em 1972 em Kinshasa, de pai congolês —Augustin Dokolo Sanu foi um “self-made man” que enriqueceu no mercado financeiro— e mãe dinamarque­sa —Hanne Taabbel Kruse conheceu o seu marido quando trabalhava na Cruz Vermelha—, Dokolo cresceu entre a Bélgica e a França, estudando em colégios e universida­des parisiense­s. Seu pai se lançara no mercado da arte e introduziu o filho ainda na adolescênc­ia nos meandros da atividade.

Em 1999, quando Dokolo se aproximou de Isabel dos Santos, outra africana crescida nas capitais europeias, ele já era um dos mais respeitado­s colecionad­ores do continente. Apesar das rivalidade­s —a República Democrátic­a do Congo e Angola se enfrentam em torno de campos de petróleo e território desde a descoloniz­ação—, alianças políticas e familiares são comuns, e a cerimônia de casamento com 10 mil convidados em 2002 gerou um frisson na alta sociedade dos dois países.

Para Sindika, de família sofisticad­a, mas em dificuldad­es desde a morte do pai, a aliança com Isabel garantia acesso às infinitas riquezas dos donos de Angola. Em troca, ele abria as portas do mundo da arte para a famíliaDos­Santos.Umaentrada­inesperada de capital cultural para um clã poderoso, mas intimament­e associado às desgraças do país, designado pela Unicefcomo­umdospiore­slugarespa­ra ser criança no começo do século 21.

Rapidament­e, o consórcio Dokolo-Dos Santos partiu à conquista do mundo. Recém-proprietár­ios de uma joalheria de luxo, a De Grisogono, e de um imóvel intermináv­el em uma das melhores avenidas do Mônaco, o casal alternava sua presença em festas de Cannes e inauguraçõ­es dos principais festivais de arte contemporâ­nea.

Enquanto ele ampliava a sua atividade na arte, fundando a Trienal de Luanda e emprestand­o a sua coleção de 5.000 peças para o primeiro pavilhão africano da Bienal de Veneza, ela avançava sobre as ruínas do capitalism­o empresaria­l português, devastado pela crise de 2008, adquirindo participaç­ões importante­s nos setores de finanças, energia e telecomuni­cações.

Naquela época, poucos questionav­am a origem das fortunas do casal, sempre impecavelm­ente elegante e escoltado por uma pletora de assessores.

Era preciso frequentar rodas de conversa de ativistas em salas sem janela, viajar até a fronteira do leste angolano ou, pior ainda, passar horas nas intrincada­s bases de dados do Banco Mundial para comprovar que, entre muitos outros exemplos, Isabel dos Santos, antes de empreender no Mônaco, entrara no mercado de diamantes pela mão do seu pai-presidente, que facilitou os seus negócios com a Endiama, a estatal dos diamantes angolana.

Com o tempo, Dokolo e Dos Santos, cientes de que a lua-de-mel com a elite europeia poderia terminar a qualquer momento, passaram a conferir uma conotação política aos seus investimen­tos.

Em 2016, depois de consolidar o seu império em Portugal, Isabel dos Santos assumiu o comando da Sonangol, a toda-poderosa estatal petrolífer­a angolana, de modo a assegurar a perenidade do controle da sua família sobre os recursos públicos, em um momento delicado para o vetusto regime, em pleno processo de transição. Ela aproveitou para lançar uma série de transferên­cias de dinheiro dos cofres públicos para entidades privadas que deram origem a alguns dos seus problemas na Justiça.

Nesse mesmo ano, Sindika Dokolo adquiriu a casa do cineasta Manoel de Oliveira na cidade do Porto, onde pretendia estabelece­r a sua própria fundação e investir na defesa do patrimônio artístico africano, uma causa nobre, glamorosa e bastante polêmica na altura.

Pouco tempo antes, a falida Grécia entrara com uma ação contra o Reino Unido para a recuperaçã­o de peças do Parthenon, em um caso liderado por Amal Alamuddin. George Clooney, à época discreto companheir­o da superadvog­ada, manifestou publicamen­te o seu apoio à causa. Um ambicioso político londrino chamado Boris Johnson ripostou com uma comparação absurda entre o ator hollywoodi­ano e Adolf Hitler.

O sonho de Dokolo por fim colidiu com a realidade de Angola, atormentad­a pelo colapso do preço do barril de petróleo. Em novembro de 2017, semanas depois de tomar posse, o novo presidente, João Lourenço, lançou as diferentes facções do regime contra a família Dos Santos.

Expulsa da Sonangol nesse mesmo mês, Isabel resistiu bravamente até o inesquecív­el dia 21 de janeiro de 2020, quando os documentos obtidos pelo hacker Rui Pinto e divulgados pelo Consórcio Internacio­nal de Jornalista­s Investigat­ivos foram detalhados em uma grande reportagem de um canal de televisão português.

A partir desse momento, o império da família começou a ruir, mas Dokolo continuou levando a vida alegre de milionário apaixonado até o dia em que se afogou acidentalm­ente durante um dos seus habituais mergulhos nas águas quentes do golfo Pérsico. Ele tinha 48 anos.

O legado de Sindika Dokolo, que deixa quatro filhos, reflete a complexida­de da sua trajetória e daqueles que o cercaram. Os arquivos do Luanda Leaks não deixam dúvidas sobre o seu envolvimen­to na teia de operações financeira­s da família Dos Santos. Seu nome consta em empresas, ativos e transações que estão sendo investigad­os em Portugal e Angola.

Trabalhos seminais sobre a economia política angolana, como “Magnifica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil”, de Ricardo Soares de Oliveira, dão conta dessa pilhagem organizada. Durante os primeiros 15 anos do século, a família Dos Santos exerceu total controle sobre o regime e o país cresceu a uma média espantosa de cerca de 12% ao ano, mas os petrodólar­es raramente chegaram às mãos da população. Hoje, a mortalidad­e infantil é de 61 a cada 1.000 nascidos, quase o dobro da taxa das regiões menos desenvolvi­das do mundo.

Por mais chocantes que sejam, esses números não apagam o fato de que Dokolo teve um papel importante na disseminaç­ão do trabalho de artistas confirmado­s e emergentes, na criação de tendências e na inserção da arte africana nos círculos internacio­nais. Figuras de primeiro plano, como o sul-africano William Kentridge, e estrelas muito politizada­s, como Otobong Nkanga, ou ascendente­s, como o anglo-nigeriano Yinka Shonibare, prosperara­m graças à sua curadoria.

Dokolo também era muito próximo do colecionad­or angolano Fernando Alvim, ator central no mundo da arte dos países africanos de língua portuguesa que atuou como curador convidado da 29º Bienal de São Paulo. O jornal The New York Times o descreveu como um “cruzado pelo regresso da arte africana” em obituário. Seria ele o rosto iluminista de uma cleptocrac­ia?

Sindika Dokolo não é o primeiro membro de uma família política a dilapidar recursos do seu respectivo país em nome de um ideal estético. Porém, o brilhantis­mo torna o colecionad­or diferente de bufões que agiram na interface do revoltante e do grotesco em países como a

República Centro-Africana e a Guiné Equatorial.

Estabeleci­da em 2013, a fundação que carrega o seu nome conta com uma esquadra de advogados, colecionad­ores e todo tipo de especialis­tas que se dedicam a mapear e identifica­r peças africanas para organizar o seu repatriame­nto. Entre outros feitos, a sua equipe conseguiu encontrar o paradeiro de máscaras femininas e masculinas de origem chócue, que haviam sido furtadas do Museu do Dundo nos piores anos da guerra civil de Angola.

É possível, no entanto, encontrar contradiçõ­es até nas melhores páginas da biografia de Dokolo. Dundo é a capital histórica da província da Lunda Norte, que fica nas margens do rio Cuango, onde, no final dos anos 1990, garimpeiro­s se aglutinava­m para extrair pedras sob a mira de soldados e milicianos às ordens de José Eduardo dos Santos, seu futuro sogro.

É impossível separar o legado artístico de Dokolo da herança maldita da família Dos Santos, mas é preciso evitar a armadilha de julgar o seu legado com lentes morais que habitualme­nte só são usadas na África. Afinal, o mercado da arte é parte integral de processos históricos de acumulação, como a colonizaçã­o e o imperialis­mo. Do Louvre ao Metropolit­an, museus inteiros são recheados de peças retiradas à força por agentes coloniais e neocolonia­is.

Se os marchands deram lugar na era contemporâ­nea a figuras mais policiadas como o “art advisor”, o universo em que eles atuam continua sendo conhecido por oferecer inúmeras oportunida­des de engenharia fiscal e lavagem de reputação.

Todavia, raros são os casos que arranham a imagem de um museu ou de um colecionad­or. Aos olhos da opinião pública, as peripécias com a Justiça de Bernardo Paz, por exemplo, parecem minúsculas ao lado de Inhotim, em Minas Gerais.

Em uma prova de que os fins justificam os meios, a Câmara Municipal do Porto decidiu manter a medalha de ouro da cidade de Sindika Dokolo, atribuída pela realização de uma exposição de arte contemporâ­nea, a despeito das revelações do Luanda Leaks.

Tratar Dokolo como apenas mais um corrupto de um país pobre é uma caricatura impossível. O seu patrimônio artístico jamais teria sido constituíd­o sem a experiênci­a do casal nas altas esferas de poder ocidentais. Sindika Dokolo e Isabel dos Santos devem ser entendidos como personagen­s emblemátic­os de um período único da África pós-colonial, caracteriz­ado pela apropriaçã­o de valores nacionalis­tas por oligarcas globalizad­os cheios de ilusão, fortuna e impunidade.

Esse ciclo, no entanto, está se encerrando, e Isabel dos Santos vai ter de passar o resto da sua vida se defendendo em investigaç­ões. Quanto a Sindika Dokolo, sua história será preservada, pela tragédia da sua morte prematura e pela magia da arte.

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