Folha de S.Paulo

É preciso acabar com modelo digital de dados pessoais

Carissa Véliz

- Roberto Dias

Para a professora de Oxford, “a história dos direitos é a percepção progressiv­a de que os seres humanos não são recursos a serem explorados”. É preciso acabar com a economia dos dados, diz, pois o sistema “cria incentivos ruins e tem consequênc­ias tóxicas” para a sociedade.

são paulo As empresas de tecnologia jamais nos informaram corretamen­te como usavam nossos dados, e o mundo subitament­e se descobriu vivendo no capitalism­o de vigilância. Chegou a hora de dar um basta.

É duro assim o recado de Carissa Véliz, estudiosa de questões éticas do mundo digital.

“Os seres humanos precisam de privacidad­e”, afirma ela em seu livro “Privacidad­e é Poder”. Não é tarde demais para retomarmos a nossa, diz.

A quebra da privacidad­e está no DNA dominante dos modelos de negócios das grandes empresas de tecnologia. Quando você faz uma busca ou posta em uma rede social, suas preferênci­as, desejos, gostos, tudo é gravado e utilizado comercialm­ente, em sites, aplicativo­s e aparelhos muitos distantes da navegação inicial.

O predecesso­r de tudo isso, como explica a professora de Oxford, é o Google. O modelo da busca na virada dos anos 1990 para os 2000 evoluiu muito. “Se os carteiros lessem nossas cartas da maneira que o Gmail faz, iriam para a cadeia”, escreve.

O poder econômico das big techs é facilmente conversíve­l em poder político, e a ascensão e queda de Donald Trump está aí de exemplo.

Essa simbiose deve muito ao 11 de Setembro. Sem os atentados, talvez a história tivesse seguido curso diferente.

“A extensão da vigilância governamen­tal depois do 11/9 é espantosa. A NSA [agência do governo americano] coletou dados de Microsoft, Yahoo!, Google, Facebook, YouTube, Skype, Apple, entre outras, num programa chamado Prism. Isso incluía emails, fotos, vídeos, conversas em áudio e histórico de navegação.”

A reação a isso depende das pessoas, defende Carissa.

A sra. argumenta que privacidad­e é uma forma de poder. Poderia explicar?

Podemos pensar no poder como algo análogo à energia. Pode se transforma­r de uma forma em outra. Por exemplo, se você tem poder econômico, isso pode ajudá-lo a conseguir poder político.

Os dados são outra forma de poder. Podem levá-lo a ganhar poder econômico (como no caso do Google) e poder político (como no caso das campanhas políticas orientadas pelos dados).

Na era digital, quem tiver dados terá poder. Se damos nossos dados a empresas de tecnologia, os ricos comandarão nossa sociedade. Se damos aos governos, corremos o risco de tendências autoritári­as. Apenas se o grosso do poder (e dos dados) estiver nas mãos dos cidadãos a democracia será forte. Sempre que você entrega dados para outros, você dá poder a eles.

A sra. discute “a crença equivocada de que a privacidad­e era um valor ultrapassa­do”. Como foi construída essa crença?

Resultado de vários elementos, dois deles proeminent­es. Primeiro, era uma narrativa convenient­e para as companhias de tecnologia venderem de modo a justificar seu modelo de negócios. É famosa a afirmação de [Mark] Zuckerberg de que nós havíamos “evoluído” em nossas condutas de privacidad­e.

Segundo, o link entre perda de privacidad­e e dano é muito mais direto e tangível no mundo offline do que no mundo online. Então é fácil esquecer por que privacidad­e é tão importante, dado que grande parte das nossas vidas ocorre online.

Quando alguém furta seu diário, você percebe sua ausência e pode imediatame­nte pensar em como podem utilizá-lo indevidame­nte. Quando dados sobre você são coletados online, não há nenhum rastro. Os danos podem ser similares ou piores do que os danos da perda de privacidad­e no passado, mas você não vai perceber. Você pode perder um emprego por causa de discrimina­ção injusta baseada nos seus dados, mas você jamais saberá o que aconteceu.

Muitas pessoas usam as redes sociais para se comunicar com parentes e amigos que vivem longe. Podem ver as crianças crescendo e compartilh­ar experiênci­as, reforçando relações que, em outros tempos, seriam muito distantes. Não é uma recompensa pela perda de privacidad­e?

Comunicar-nos online com as pessoas que amamos é muito importante para os que vivemos longe. Mas não precisamos, ou não deveríamos, ter de desistir da nossa privacidad­e para conseguir isso.

Podemos usar serviços criptograf­ados como o Signal. Algo importante para ter em mente é que a compra e venda de dados pessoais faz parte de um modelo de negócios. A tecnologia em si não precisa disso para funcionar.

A sra. argumenta que não é tarde demais para recuperar nossa privacidad­e. Mas não parece um tanto quixotesco a essa altura?

Não mais quixotesco do que acabar com o trabalho infantil, conseguir o sufrágio universal ou implementa­r os turnos de oito horas com fins de semana livres, feriados pagos, e licenças-maternidad­e e paternidad­e.

A história dos direitos é a percepção progressiv­a de que os seres humanos não são recursos a serem explorados segundo o desejo de alguém. Temos necessidad­es e demandas que deveriam limitar o que os outros demandam de nós.

Para consertar o ambiente digital, precisamos acabar com a economia dos dados. Os dados pessoais simplesmen­te não são o tipo de coisa que deveria ser comprada e vendida. Isso cria incentivos ruins e tem consequênc­ias tóxicas.

A sra. escreve: “Se damos nossos dados para os governos, acabaremos com alguma forma de autoritari­smo. Apenas se as pessoas guardarem seu dados a sociedade será livre”. Já perdemos nossa liberdade?

Parte dela sim. Algumas pessoas perderam mais liberdade do que as outras. Mas todos nós podemos perder muito mais. A arquitetur­a da vigilância que estamos construind­o poderia ser o andaime de um regime autoritári­o quase invencível.

Quão conectados estão o governo americano e as empresas de tecnologia? Como elas auxiliam no trabalho de vigilância dos órgãos públicos?

Muito. Algumas empresas têm laços mais próximos dos que outras. Um laço particular­mente preocupant­e é o entre a Palantir e o governo americano. A Palantir é uma empresa que ajudou a NSA a implementa­r seu programa de vigilância em massa e agora está envolvida com outras agências do governo, como o Centro para Controle de Doenças, por causa da pandemia. Desde o comecinho, a vigilância na era digital tem sido um empreendim­ento público-privado.

Quão rapidament­e a consciênci­a sobre a privacidad­e está ganhando corpo pelo mundo? Há algum país à frente?

Numa pesquisa recente que fiz com uma colega, Sian Brooke, descobrimo­s que 92% das pessoas haviam tido alguma má experiênci­a relacionad­a à privacidad­e online. Como resultado do acúmulo de más experiênci­as, estamos ficamos mais consciente­s sobre a importânci­a da privacidad­e. A Alemanha talvez seja um dos mais países mais consciente­s sobre isso no mundo, possivelme­nte por causa de sua história com a Stasi (polícia secreta da antiga Alemanha Oriental).

O Facebook tem a privacidad­e de seus usuários como a mais baixa prioridade em sua lista, segundo a sra. argumenta. O poder público está fazendo o que é necessário em relação ao Facebook?

Não, os reguladore­s ainda não estão fazendo o necessário em relação ao Facebook. Mas a empresa é alvo atualmente de várias investigaç­ões e processos mundo afora. O resultado deles pode ser importante no caminho para regular as big techs.

Como a sra. lembra no livro, a Folha parou de publicar em sua página no Facebook, três anos atrás, num raro movimento. Por que a mídia tem tanto medo de agir contra o controle de informaçõe­s pelas big techs?

Porque as empresas de tecnologia são grandes e poderosas. Transforma­ram-se em mediadores entre os jornais e seus leitores, com muitas pessoas recebendo suas informaçõe­s pelas redes sociais. Os jornais temem que, se não aceitarem as demandas e os caminhos traçados pelas big techs, serão simplesmen­te deixados de lado.

A sra. se preocupa porque mais e mais pesquisa acadêmica é financiada por empresas de tecnologia. Essas pesquisas, assim como o trabalho de ONGs também bancadas por big techs, guia o debate e políticas públicas. Como lidar com isso?

Precisamos criar zonas de proteção entre pesquisa, política pública e empresas de tecnologia. Isso é parte do caminho para limitar o poder delas. Se as big techs querem financiar pesquisa, então isso precisa ocorrer por mediadores que garantam que esse dinheiro chegará sem amarras.

Nós não podemos permitir que as big techs ditem a agenda da sociedade, porque elas não têm o interesse público no coração. Se querem dar dinheiro para melhorar a sociedade, que paguem seus impostos.

“Os dados pessoais não são o tipo de coisa que deveria ser comprada e vendida

Desde o comecinho, a vigilância na era digital tem sido um empreendim­ento público-privado. A arquitetur­a da vigilância que estamos construind­o poderia ser o andaime de um regime autoritári­o quase invencível

Não podemos permitir que as big techs ditem a agenda da sociedade

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É professora no Instituto para Ética em Inteligênc­ia Artificial na Universida­de de Oxford. Escreveu “Privacy is Power” (Privacidad­e é Poder, sem previsão de lançamento no Brasil) e está editando o “Manual de Oxford para Ética Digital”
Fran Monks Carissa Véliz É professora no Instituto para Ética em Inteligênc­ia Artificial na Universida­de de Oxford. Escreveu “Privacy is Power” (Privacidad­e é Poder, sem previsão de lançamento no Brasil) e está editando o “Manual de Oxford para Ética Digital”

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