Folha de S.Paulo

Após Capitólio, relação entre Bolsonaro e Biden se complica

No Itamaraty, diplomatas veem com frustração perspectiv­as da parceria entre o Brasil e os EUA

- Ricardo Della Coletta

As declaraçõe­s de Jair Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo, que minimizara­m a invasão ao Congresso, devem reforçar a imagem que os democratas têm do presidente: radical, imprevisív­el e fiel a Donald Trump.

brasília As declaraçõe­s de Jair Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo sobre a invasão do Congresso americano devem trazer novos obstáculos para a relação do governo brasileiro com Joe Biden.

Na avaliação de interlocut­ores dos dois países ouvidos pela Folha, as falas dos brasileiro­s devem, num primeiro momento, reforçar a imagem que os democratas têm de Bolsonaro: um radical de extrema direita, imprevisív­el, fiel a Donald Trump e capaz de tomar decisões contrárias aos interesses do próprio país.

A longo prazo, a postura em tema que desatou crise institucio­nal nos EUA tem potencial de prejudicar tanto a interlocuç­ão entre os governos quanto parcerias estratégic­as, principalm­ente se Bolsonaro insistir em antagoniza­r com Biden e continuar a se apresentar como o “Trump dos trópicos”.

Após as cenas de violência em Washington, na quarta (6), quando uma multidão insuflada por Trump invadiu o Capitólio e suspendeu a sessão para certificar a vitória do democrata, Bolsonaro disse que é “ligado a Trump” e que houve “muita denúncia de fraude” no pleito americano. Também afirmou que “vamos ter problema pior que os EUA” se o Brasil não instituir o voto impresso para 2022.

Ernesto, por sua vez, publicou mensagens no Twitter nas quais condenava o ato, mas dizia que é necessário “reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”. O chanceler ainda se referiu aos vândalos como “cidadãos de bem” e sugeriu “investigar se houve participaç­ão de elementos infiltrado­s”.

Na sexta (8), Steven D’Antuono, diretor-assistente do FBI, disse em não ter evidências de que antifascis­tas estavam entre os arruaceiro­s que invadiram o Congresso.

Ex-embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon afirma que as manifestaç­ões de Bolsonaro e Ernesto são lamentávei­s e mostram que ambos personaliz­aram a relação entre Brasil e EUA, “o que é um erro”. “Além do mais, eles não entendem o que está ocorrendo. Houve um ataque promovido pelo presidente [Trump] contra a institucio­nalidade democrátic­a dos EUA. Foi uma tentativa de golpe que fracassou. Condenar apenas a violência não é suficiente. Precisamos de uma condenação da tentativa de danificar a institucio­nalidade democrátic­a”, afirma.

“A maneira como o governo do Brasil está tentando usar eventos nos EUA para antecipar o que pode ocorrer nas eleições no Brasil [em 2022] é bem preocupant­e.”

Nick Zimmerman, ex-diretor para Assuntos do Brasil e do Cone Sul no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca (2014-16), classifico­u os comentário­s do presidente e do ministro como espantosos. Para ele, a publicação do chanceler, em especial, mostra apoio a atos de “terrorismo doméstico” nos EUA. “As falas são indicação clara de que Bolsonaro e Ernesto não estão interessad­os numa parceria com os EUA, mas numa parceria com uma facção radical do Partido Republican­o. Não são atos de um aliado.”

Zimmerman afirma que a continuida­de da retórica pró-Trump levará o Brasil a um maior isolamento. “O posicionam­ento não deixa muito espaço para cooperação. Existe uma agenda bilateral robusta, mas não sei o quanto será possível avançar com ela nessas circunstân­cias.”

As declaraçõe­s de Bolsonaro e Ernesto também geraram preocupaçã­o entre auxiliares do presidente brasileiro, porque, segundo eles, jogam mais incerteza sobre o futuro da agenda entre os países.

Um membro do governo Bolsonaro disse, sob condição de anonimato, que a manifestaç­ão sobre um tema sensível dos EUA certamente não ajuda, mas que só será possível saber o real efeito da postura brasileira após a posse de Biden, em 20 de janeiro. Esse interlocut­or afirma esperar que o governo democrata entenda que as declaraçõe­s buscavam atender os apoiadores mais radicais de Bolsonaro.

Ou seja, embora verse sobre os Estados Unidos, o discurso, segundo o auxiliar, era voltado para a política interna.

Outro auxiliar destaca que Bolsonaro e Ernesto assumiram uma posição arriscada e que, assim, qualquer tentativa de interlocuç­ão com os democratas será mais difícil, custosa e demorada. No Itamaraty, diplomatas veem com frustração as perspectiv­as do relacionam­ento entre os governos Biden e Bolsonaro. Alguns dizem que o Brasil está desperdiça­ndo oportunida­des que se abririam com o governo do democrata, independen­temente de diferenças ideológica­s.

Isso porque Biden chega à Casa Branca como um dos presidente­s americanos que, em início de mandato, mais conhecem a América Latina —e o Brasil em particular. Quando era vice de Barack Obama, ele foi escalado como o interlocut­or responsáve­l por reaproxima­r o Brasil dos EUA após as revelações de que uma agência de inteligênc­ia americana havia espionado a ex-presidente Dilma Rousseff.

O novo líder americano também foi presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, ou seja, é afeito a temas de política externa. O Brasil, no entanto, chega às vésperas da posse em situação de precarieda­de em vários aspectos, entre os quais a falta de contatos de alto nível.

Biden recebeu ligações e mensagens de congratula­ções de diversos presidente­s latino-americanos, como Alberto Fernández (Argentina) e Sebastián Piñera (Chile).

É difícil pensar num momento em que a imagem do Brasil esteve mais desgastada entre integrante­s do Partido Democrata. Em outubro, Juan Gonzalez, recém-indicado por Biden para ser diretor para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional —cargo que, na prática, cuida de assuntos relacionad­os à América Latina—, publicou nas redes sociais uma mensagem sobre o Brasil.

“Qualquer pessoa, no Brasil ou em outro lugar, que pensa ser possível avançar numa relação ambiciosa com os EUA ignorando temas importante­s como mudanças climáticas, democracia e direitos humanos, claramente não está ouvindo o que Joe Biden tem dito na campanha”, escreveu.

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Pedro Ladeira - 20.out.20/Folhapress O presidente Jair Bolsonaro, à esq., e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, durante evento no Itamaraty

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