Após Capitólio, relação entre Bolsonaro e Biden se complica
No Itamaraty, diplomatas veem com frustração perspectivas da parceria entre o Brasil e os EUA
As declarações de Jair Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo, que minimizaram a invasão ao Congresso, devem reforçar a imagem que os democratas têm do presidente: radical, imprevisível e fiel a Donald Trump.
brasília As declarações de Jair Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo sobre a invasão do Congresso americano devem trazer novos obstáculos para a relação do governo brasileiro com Joe Biden.
Na avaliação de interlocutores dos dois países ouvidos pela Folha, as falas dos brasileiros devem, num primeiro momento, reforçar a imagem que os democratas têm de Bolsonaro: um radical de extrema direita, imprevisível, fiel a Donald Trump e capaz de tomar decisões contrárias aos interesses do próprio país.
A longo prazo, a postura em tema que desatou crise institucional nos EUA tem potencial de prejudicar tanto a interlocução entre os governos quanto parcerias estratégicas, principalmente se Bolsonaro insistir em antagonizar com Biden e continuar a se apresentar como o “Trump dos trópicos”.
Após as cenas de violência em Washington, na quarta (6), quando uma multidão insuflada por Trump invadiu o Capitólio e suspendeu a sessão para certificar a vitória do democrata, Bolsonaro disse que é “ligado a Trump” e que houve “muita denúncia de fraude” no pleito americano. Também afirmou que “vamos ter problema pior que os EUA” se o Brasil não instituir o voto impresso para 2022.
Ernesto, por sua vez, publicou mensagens no Twitter nas quais condenava o ato, mas dizia que é necessário “reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”. O chanceler ainda se referiu aos vândalos como “cidadãos de bem” e sugeriu “investigar se houve participação de elementos infiltrados”.
Na sexta (8), Steven D’Antuono, diretor-assistente do FBI, disse em não ter evidências de que antifascistas estavam entre os arruaceiros que invadiram o Congresso.
Ex-embaixador dos EUA no Brasil, Thomas Shannon afirma que as manifestações de Bolsonaro e Ernesto são lamentáveis e mostram que ambos personalizaram a relação entre Brasil e EUA, “o que é um erro”. “Além do mais, eles não entendem o que está ocorrendo. Houve um ataque promovido pelo presidente [Trump] contra a institucionalidade democrática dos EUA. Foi uma tentativa de golpe que fracassou. Condenar apenas a violência não é suficiente. Precisamos de uma condenação da tentativa de danificar a institucionalidade democrática”, afirma.
“A maneira como o governo do Brasil está tentando usar eventos nos EUA para antecipar o que pode ocorrer nas eleições no Brasil [em 2022] é bem preocupante.”
Nick Zimmerman, ex-diretor para Assuntos do Brasil e do Cone Sul no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca (2014-16), classificou os comentários do presidente e do ministro como espantosos. Para ele, a publicação do chanceler, em especial, mostra apoio a atos de “terrorismo doméstico” nos EUA. “As falas são indicação clara de que Bolsonaro e Ernesto não estão interessados numa parceria com os EUA, mas numa parceria com uma facção radical do Partido Republicano. Não são atos de um aliado.”
Zimmerman afirma que a continuidade da retórica pró-Trump levará o Brasil a um maior isolamento. “O posicionamento não deixa muito espaço para cooperação. Existe uma agenda bilateral robusta, mas não sei o quanto será possível avançar com ela nessas circunstâncias.”
As declarações de Bolsonaro e Ernesto também geraram preocupação entre auxiliares do presidente brasileiro, porque, segundo eles, jogam mais incerteza sobre o futuro da agenda entre os países.
Um membro do governo Bolsonaro disse, sob condição de anonimato, que a manifestação sobre um tema sensível dos EUA certamente não ajuda, mas que só será possível saber o real efeito da postura brasileira após a posse de Biden, em 20 de janeiro. Esse interlocutor afirma esperar que o governo democrata entenda que as declarações buscavam atender os apoiadores mais radicais de Bolsonaro.
Ou seja, embora verse sobre os Estados Unidos, o discurso, segundo o auxiliar, era voltado para a política interna.
Outro auxiliar destaca que Bolsonaro e Ernesto assumiram uma posição arriscada e que, assim, qualquer tentativa de interlocução com os democratas será mais difícil, custosa e demorada. No Itamaraty, diplomatas veem com frustração as perspectivas do relacionamento entre os governos Biden e Bolsonaro. Alguns dizem que o Brasil está desperdiçando oportunidades que se abririam com o governo do democrata, independentemente de diferenças ideológicas.
Isso porque Biden chega à Casa Branca como um dos presidentes americanos que, em início de mandato, mais conhecem a América Latina —e o Brasil em particular. Quando era vice de Barack Obama, ele foi escalado como o interlocutor responsável por reaproximar o Brasil dos EUA após as revelações de que uma agência de inteligência americana havia espionado a ex-presidente Dilma Rousseff.
O novo líder americano também foi presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, ou seja, é afeito a temas de política externa. O Brasil, no entanto, chega às vésperas da posse em situação de precariedade em vários aspectos, entre os quais a falta de contatos de alto nível.
Biden recebeu ligações e mensagens de congratulações de diversos presidentes latino-americanos, como Alberto Fernández (Argentina) e Sebastián Piñera (Chile).
É difícil pensar num momento em que a imagem do Brasil esteve mais desgastada entre integrantes do Partido Democrata. Em outubro, Juan Gonzalez, recém-indicado por Biden para ser diretor para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional —cargo que, na prática, cuida de assuntos relacionados à América Latina—, publicou nas redes sociais uma mensagem sobre o Brasil.
“Qualquer pessoa, no Brasil ou em outro lugar, que pensa ser possível avançar numa relação ambiciosa com os EUA ignorando temas importantes como mudanças climáticas, democracia e direitos humanos, claramente não está ouvindo o que Joe Biden tem dito na campanha”, escreveu.