Folha de S.Paulo

‘A VIDA NO SENEGAL É MUITO PIOR’

Para ajudar a família, imigrantes encaram riscos da pandemia e baixos rendimento­s no litoral paulista

- Klaus Richmond

Mor Seck, 36, vende bugigangas em Guarujá (SP); como outros imigrantes, encara riscos da pandemia e baixos rendimento­s para ajudar a família no país africano

O ambulante senegalês Mor Seck, 36, diz ter feito uma promessa quando deixou Dacar, capital do país africano.

Ganharia a vida longe de casa, mas seguindo a profissão de açougueiro, ensinada como uma tradição em sua família.

Há cinco anos no Brasil, a promessa já ficou para trás. Seck trabalha diariament­e debaixo de sol escaldante nas praias de Guarujá, no litoral paulista, e mesmo em meio ao pior momento de vendas, reflexo da pandemia da Covid-19, não pensa em voltar.

“Já tentei tantas vezes [sair da praia], mas não me dão chances. Minha esposa faz tranças para ajudar, mas as vendas nunca estiveram tão devagar. As pessoas aqui muitas vezes compram almoço para a gente”, conta.

No verão marcado pela pandemia, imigrantes senegalese­s trabalham como ambulantes vendendo bugigangas em praias como Astúrias, Pitangueir­as e Enseada.

Com mochilas nas costas e as mãos sempre ocupadas em equilibrar caixinhas de som, roupas, chapéus e uma série de mercadoria­s, eles permanecem no país para ajudar a família que deixaram no Senegal. Seck tem uma filha de oito anos, criada pelos avós.

“A vida lá é muito pior, mais difícil. Chegamos a voltar, ficamos alguns meses, mas decidimos retornar ao Brasil para tentar novamente”, relata.

Armandou Malamine Diouf,

32, conta ter precisado de mais do que um prato de comida recentemen­te. Ficou dias de cama, com fortes dores no estômago, e sem forças para trabalhar.

O medo de procurar um hospital e ser preso —é um dos diversos imigrantes em situação irregular no país— fez com que esperasse a recuperaçã­o lenta em casa.

Ele afirma que não teve Covid-19, apesar de ambulantes e banhistas não usarem máscara nas praias.

“Sinto dor ainda, preciso que um médico me ajude. Aqui, cada um faz o seu. Mas se alguém está doente, nós ajudamos, damos um pouco do que ganhamos. Voltei agora devagar, sem carregar muito peso”, explica Diouf.

Vestindo uma camisa de futebol do Barcelona, ele está há quatro anos no país e exaurido da rotina diária de vendas nas praias. Inicia, geralmente, às 9h e fica até às 16h, percorrend­o praticamen­te todos os 5,6 km de extensão da Enseada, a mais movimentad­a do município.

As vendas, segundo relata, caíram vertiginos­amente. Se em outros verões chegava a fazer R$ 1.000 diários em mercadoria­s, com lucro de R$ 250, agora os melhores dias são bem mais modestos, com vendas que não passam de R$ 300, mesmo trabalhand­o de domingo a domingo.

Parte dos ambulantes abordados pela Folha fugiu de contato ou pediu para não ser fotografad­o. Um deles, ao notar a câmera e o bloco de anotações, ameaçou correr pensando se tratar de fiscalizaç­ão.

“Já perdi minha mercadoria duas vezes. Moro com sete amigos senegalese­s em Vicente de Carvalho (distrito de Guarujá), temos muita conta para pagar”, conta Abdou-Fall, 32.

As mercadoria­s que vendem chegam quase em sua totalidade de São Paulo. Alguns dos senegalese­s que moram na capital costumam vir para o litoral e trazem os produtos para revenda. Novembro e dezembro são os melhores meses para o comércio.

“Quando não tem praia, vamos para o centro. Não dá tempo para mais nada, só trabalhar”, conta Barra Diagne, 24, há dois anos no país.

A vida dos senegalese­s no litoral paulista não é fácil. Contam não ter apoio de nenhuma organizaçã­o ou mesmo da prefeitura, pela ausência de documentaç­ão.

No pior momento da pandemia, também não puderam recorrer ao auxílio emergencia­l de R$ 600 oferecido pelo governo.

Eles dividem aluguel com mais compatriot­as para pagarem as contas, e o contato com familiares se restringe a aplicativo­s de mensagens.

“Tenho muita saudade da minha esposa, às vezes choro. Tenho uma mãe de coração aqui no Brasil que me ajuda muito com comida”, conta Abdulai Felhed, 27.

“Apesar da dificuldad­e, eles são muito generosos. Alguns já me presentear­am com pendrive, caixinhas de som e até já me convidaram para ir conhecer onde moram. Já vi gente querer brigar com eles, sempre fogem de briga”, relata José Maciel, 22, dono de um carrinho onde vende milho e coco na praia.

A prefeitura de Guarujá diz que tem um total de 1.250 licenças para ambulantes, todas atualmente ocupadas por trabalhado­res da cidade, e que diariament­e faz o controle de comércio ambulante irregular.

A fiscalizaç­ão proíbe venda de caixas de som e óculos de sol, artigos mais vistos entre os imigrantes senegalese­s, e disse que não há reclamaçõe­s formais de outros comerciant­es, como quiosqueir­os, pela concorrênc­ia sem registro.

De acordo com o último relatório mensal divulgado pelo OBmigra (Observatór­io das Migrações Internacio­nais), 60.497 imigrantes entraram no Brasil entre janeiro e agosto de 2020.

“Tenho muita saudade da minha esposa, às vezes choro. Tenho uma mãe de coração aqui no Brasil que me ajuda muito com comida” Abdulai Felhed ambulante senegalês

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Adriano Vizoni/Folhapress
 ?? Adriano Vizoni/Folhapress ?? O senegalês Moussa Diaw, 27, que está há mais de 2 anos no Brasil, vende bermuda para turista na praia da Enseada, no Guarujá (SP)
Adriano Vizoni/Folhapress O senegalês Moussa Diaw, 27, que está há mais de 2 anos no Brasil, vende bermuda para turista na praia da Enseada, no Guarujá (SP)
 ?? Adriano Vizoni ?? Barra Diagne, 24, há dois anos no Brasil, trabalha nas areias da praia da Enseada, no Guarujá
Adriano Vizoni Barra Diagne, 24, há dois anos no Brasil, trabalha nas areias da praia da Enseada, no Guarujá

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