Folha de S.Paulo

Não adianta xingar a turba trumpista

Não adianta xingar os invasores do Capitólio porque eles não acreditam em nós

- Luiz Felipe Pondé

Imagine que você cresceu em bairros periférico­s e não teve acesso a muita coisa boa que permite as pessoas se educarem e ganharem dinheiro.

Agora, imagine que você escuta com frequência, porque trabalha para a elite, coisas como “minha empregada, coitada, é evangélica, não teve opção na vida”, “essas crianças vão reproduzir a violência que veem nos seus bairros e nas suas casas”, “pessoas ignorantes votam em idiotas”, e por aí vai.

Agora, imagine que essas pessoas da elite, com as quais você convive profission­almente, resolvem explicar pra você que, como você é ignorante e pobre, você acredita em fake news. Imagine você, servindo cafezinho para essas “gentes”, enquanto eles e elas, todos e todas bem chiques, discutem a complexida­de do impacto da desinforma­ção na era das mídias sociais e como isso fortalece discursos populistas do tipo Trump e Bolsonaro.

Arriscaria dizer que não adianta ficarmos xingando os invasores do Capitólio em Washington, do dia 6 de janeiro, porque eles não acreditam em nós que somos mais inteligent­es, mais ricos (no geral) e mais bem informados.

Somos essa elite chique que discute a complexida­de do impacto da desinforma­ção na era das mídias sociais e como isso fortalece discursos populistas tipo Trump e Bolsonaro. Eles são os que fazem nossas estantes em nossas biblioteca­s ou os que fazem o encanament­o de nossas casas de praia.

Agora, eles têm formas de transforma­r o ressentime­nto e a exclusão de postos institucio­nais de produção de informação em ação. Diria, em práxis. Eis o caráter democrátic­o popular das redes. A vocação à tagarelice na democracia já era apontada por Alexis de Tocquevill­e (1805-1859) em seu monumental “Democracia na América”.

A elite não gosta de ruídos e falta de educação. Mas, é típico de toda elite hoje ser condescend­ente com os menos afortunado­s. E quando esses se fazem revoltosos, temos uma gama de justificat­ivas para julgá-los.

A extrema direita americana e brasileira julgam ter atingindo o grau de verdadeiro­s revolucion­ários e disputam pau a pau o vocabulári­o jacobino. A esquerda, atordoada, como toda elite quando vê gente se comportand­o de forma inadequada em relação ao status quo, busca explicaçõe­s para se acalmar à noite, além de tranquiliz­antes.

Essa turba não está nem aí para as instituiçõ­es democrátic­as. Consideram-nas todas corruptas e defensoras das elites. Xingam jornalista­s de mentirosos porque a mídia é elite, assim como as universida­des.

Há uma ruptura de vocabulári­o que a inteligênc­ia pública insiste em não reconhecer porque alimenta, ainda, o fetiche de termos como “revolucion­ário”,

“quebra de paradigmas”, “preconceit­os estruturai­s” e afins. Essa turba pensa que nós temos um preconceit­o estrutural contra gente que não aceita nossas explicaçõe­s sofisticad­as para o mundo deles.

As redes sociais estão criando uma ruptura radical na semântica da reflexão pública, trazendo à tona todo um universo de significad­os políticos (e outros) que a maioria de nós não consegue assimilar porque aderimos a um jogo de linguagem de gente chique: “defesa das instituiçõ­es democrátic­as” soa, para os descamisad­os dos Estados Unidos, como “se não tem pão por que não comem brioche?”.

Essa turba aprendeu a lição da disputa por narrativas e sabe que as pessoas, na realidade profunda do cotidiano, acreditam em qualquer lixo que as agrade. O povo, quando faz o que eu acho idiota, é ignorante. Quando faz o que eu acho legal, é progressis­ta.

Um detalhe significat­ivo. Luís Corrêa Lima, no seu “Fernand Braudel e o Brasil, Vivência e Brasiliani­smo (19351945)”, Edusp, 2009, dedica excelentes páginas à missão francesa na USP nos anos 1930, da qual Braudel fez parte.

Numa dessas narrativas, vemos que os jantares inteligent­es da elite paulistana de então tinha que ter seu francês inteligent­e, antes do vinho e do jantar, ilustrando a noite. Essas “gentes” tinham seus serviçais ignorantes também. Nada mudou. Continuamo­s com nossos franceses, em nossos jantares inteligent­es, em que vomitamos com demonstraç­ões de política sem educação.

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Ricardo Cammarota

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