Folha de S.Paulo

O Capitólio e a turba

Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

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A invasão do Capitólio dos EUA por extremista­s instigados por Donald Trump deflagrou debates intensos entre analistas sobre suas causas e implicaçõe­s sobre a democracia nos EUA. Dois cientistas políticos têm recebido grande atenção por terem se não previsto pelo menos antecipado os contornos gerais dos acontecime­ntos.

O primeiro é Cas Mudde (Universida­de da Geórgia), que há quase três décadas estuda a direita radical. Em sua coluna no jornal The Guardian, Mudde argumenta que a invasão reflete a ascensão da extrema direita radical. E cita episódios semelhante­s que ocorreram na Alemanha e Holanda.

A direita radical tem sido exitosa porque, embora represente fração pequena da sociedade, explora uma suposta “white victimhood” (vitimizaçã­o branca), com a complacênc­ia da direita não radical, com quem comunga uma visão do mundo à direita, e de setores liberais e da mídia, que não os denunciam; e acabam endossando a ideia de que esse grupo pequeno é “o povo” ou grupos que são deixados para trás e padecem de “ansiedade econômica”. Esses grupos temem tornarem-se vítimas dos métodos violentos da turba, o que acaba os levando a não lhes fazer oposição.

Tudo isso faz sentido, mas a questão fundamenta­l não é respondida: por que a direita tradiciona­l teme a turba e passou a agir desse modo? A conclusão de que “chegamos até aqui acima de tudo devido a um longo processo de covardia, falhas e oportunism­o míope da direita tradiciona­l” não é um argumento para uma questão complexa, mas uma acusação.

O segundo é Steven Levitsky (Universida­de Harvard), que alertou em “Quando as Democracia­s Morrem”, co-autorado com D. Ziblatt, para as possíveis consequênc­ias do processo de erosão reiterada de normas democrátic­as, da qual Trump era o maior protagonis­ta. Ele interpreto­u o episódio como “uma tentativa de autogolpe”. E qualificav­a: “um autogolpe fracassado, mas é uma insurreiçã­o do poder para tentar subverter os resultados da eleição e permanecer no poder ilegalment­e”.

Como conciliar essa conclusão com a afirmação de que “uma caracterís­tica de Trump é que ele não antecipa as consequênc­ias do que diz e faz. Então eu não acho que ele previu o que acabou acontecend­o hoje no Capitólio, embora ele o tenha instigado”. Como poderia ser um autogolpe se o protagonis­ta do golpe não antecipava a interrupçã­o violenta do processo de validação do resultado das eleições? Se não esperava a invasão, tratava-se apenas de uma manifestaç­ão colérica nas escadarias no Capitólio de apoio aos congressis­tas rebeldes e não um autogolpe?

O incitament­o ilegal e irresponsá­vel de Trump é consistent­e, porém, com a construção de uma narrativa de saída pósderrota, não com autogolpes.

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