Folha de S.Paulo

‘Dog Days Are Over’ se torna hino involuntár­io do Ano-Novo da Covid

Canção da banda Florence and The Machine deu as caras em festas que reuniram multidões no Nordeste na virada

- Clara Balbi e Marina Consiglio Colaborara­m Carolina Moraes e Lucas Brêda

são paulo Os dias de cão acabaram. Pelo menos é o que

berravam as multidões que curtiam as festas de Réveillon espalhadas pelo litoral do Nordeste nesta virada pandêmica, recitando os versos da música “Dog Days Are Over”, da banda indie britânica Florence and the Machine.

Em vídeos que pipocaram na última semana, centenas de jovens dançam e pulam ao som da música, na versão original ou em remixes, em espaços com estruturas de grandes festivais, transforma­ndo-a num inesperado hino das festas feitas apesar da Covid-19.

A falta de máscaras, um acessório obrigatóri­o da nossa atual distopia, poderia até enganar o público desavisado. Mas os registros são dos últimos momentos de 2020 —um ano, é verdade, do cão.

Publicadas pelo perfil Brasil Fede Covid no Instagram e no Twitter, as imagens que circularam foram feitas em pelo menos três eventos diferentes de Ano-Novo. Dois deles acontecera­m no Rio Grande do Norte, o Réveillon do Gostoso, em São Miguel do Gostoso, e o Let’s Pipa, em Tibau do Sul. O terceiro foi realizado em Barra Grande, no Piauí.

Segundo os administra­dores do Brasil Fede Covid, que preferiram não se identifica­r, a música aparece em pelo menos 50 vídeos entre os quase mil conteúdos analisados pelo perfil até o domingo (3).

Eles afirmam que é de longe a trilha sonora mais comum em registros de festas do tipo, e que a maioria dos vídeos em que ela soa é de eventos no Nordeste. Os administra­dores acrescenta­m que todos os vídeos publicados pelo Brasil Fede Covid são retirados de perfis de usuários, e que a equipe checa dados de dia, horário e localizaçã­o antes de postá-los, evitando, assim, publicar vídeos de outros anos e fake news em geral.

A assessoria de imprensa do Réveillon do Gostoso confirma que o vídeo foi, mesmo gravado lá, em 26 de dezembro —mas ressalta que o uso de máscaras era obrigatóri­o e que após a circulação das imagens a fiscalizaç­ão se tornou mais rígida, lembrando ainda que o evento tinha autorizaçã­o para acontecer e exigiu exames dos participan­tes.

A reportagem tentou entrar em contato com a organizaçã­o do Let’s Pipa, mas não teve retorno. Já a festa de Barra Grande do Piauí não pôde ser mapeada, uma vez que a praia iria receber o Réveillon das Emoções, que foi cancelado.

Lançado em 2008, “Dog Days Are Over” foi o segundo single do álbum de estreia da banda Florence and the Machine, “Lungs”. Em 2010, a música foi relançada e ganhou um novo clipe, melhor produzido. Juntas, as duas versões do vídeo têm mais de 156 milhões de views no YouTube.

Difícil de encaixar em um gênero musical, mas queridinha do público indie, a composição combina sons de harpa, tambores e palmas para criar o clima festivo para uma letra sobre a chegada avassalado­ra da felicidade (o primeiro verso diz algo como “a felicidade a atingiu como um trem”). Pura catarse.

Hit certo nas baladas de indie rock que animavam a noite no começo dos anos 2010, sua entrada nas caixas de som ganhava tons ritualísti­cos nas pistas. “Toda vez rolava essa coisa de baixar a luz na hora que a música fica mais lenta, para aumentar o grave na hora em que ela anima de novo. E aí era sempre uma catarse, o povo gritando, jogando bebida pro alto”, conta o DJ e jornalista Alexandre Bezzi, que foi residente em clubes como Funhouse, Yatch e D-Edge, em São Paulo, na época.

Até hoje a composição aparece nos set lists, conta Sérgio Oliveira, o Sérjô, DJ no Sputnik, no centro de São Paulo. Mas com outra conotação, pelo menos na pista. “Virou uma coisa meio de fim de festa”, diz. É claro que há quem curta, mas agora muita gente que entende como despedida.

Oliveira diz que a música pode ter tudo a ver com um êxtase pós-pandemia, “mas ainda é cedo para comemorar”.

Já Bezzi avalia que a canção pode ser considerad­a um sucesso por não ter ficado restrita a um nicho único —tanto é que virou a estrela dessas festas de Ano-Novo, bem distantes do universo indie.

“Mas se eu fosse a Florence [Welsh, líder da banda], ficaria extremamen­te constrangi­da de as pessoas estarem usando essa música para celebrar uma ilusão. O vírus está aí ainda”, ele diz, lembrando os 200 mil mortos no país.

É possível que essa fosse a posição da cantora caso soubesse que sua música está animando festas com turbas de baladeiros em plena pandemia. Em abril de 2020, ela declarou que doaria o valor arrecadado com sua canção recém-lançada “Light of Love” para o fundo da The Intensive Care Society Covid-19, de apoio aos profission­ais de saúde do Reino Unido, e incentivou os fãs a fazerem o mesmo.

Ela também publicou um poema escrito coletivame­nte sobre a vida na quarentena.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil