Folha de S.Paulo

Supervilão

Lenda do undergroun­d, MF Doom, que mandava sósias para os shows, foi o grande rebelde do rap

- Lucas Brêda

Nos últimos dias, um vídeo voltou a circular nas redes sociais. Ele mostra os rappers Tyler the Creator e Earl Sweatshirt, adolescent­es, assistindo a um show de MF Doom. Como crianças eufóricas, eles pulam e cantam logo antes de conhecerem o mestre mascarado que tanto veneram.

Com máscara de metal, inspirada em Doutor Destino, o supervilão da Marvel, Doom parece desajeitad­o na ocasião. Recebe os jovens e tira uma foto, mas sai de cena sem cerimônia e —não fosse a máscara— parecendo mais um funcionári­o da técnica que não quer ser incomodado do que a estrela que deixara o palco.

Um gênio envolto em mistério, Doom morreu no último mês de outubro. Ninguém soube. No dia 31 de dezembro, suamulher publicouum­a mensagem enigmática, agradecend­o Daniel Dumile —seu nome de batismo— pela atuação como pai e marido, mas sem falar da morte com todas as letras.

Até que a imprensa a confirmass­e, os fãs acreditara­m se tratar da morte do personagem MF Doom, o supervilão do rap, uma lenda do undergroun­d que, se não chegava perto de ter a fama de um astro do gênero, era do tipo “favorito do seu favorito” —influência constante no hip-hop fora do circuito mainstream.

A morte de Dumile foi anunciada na virada do ano, mas, mesmo dias depois, artigos sobre sua relevância se multiplica­m, e o hip-hop continua de luto. Não é à toa. Dumile teve uma trajetória tão improvável quanto suas sequências de rimas aparenteme­nte desconexas —frases que funcionam separadas, mas com um sentido transcende­nte quando empilhadas em suas músicas.

Dumile não mostrava o rosto em público, e muitas vezes mandava sósias para, com a famosa máscara, o substituír­em em seus shows. Há histórias de que ele mesmo assistia aos “próprios” shows, da plateia. O público muitas vezes percebia e reclamava da farsa, e não era como se o rapper se importasse com isso.

“Tudo que a gente faz é no estilo vilão”, ele disse sobre a atitude à Rolling Stone. Na verdade, Doom encarnou a figura do vilão. Nos anos 1990, quando o hip-hop despontava no mainstream com Jay-Z, Tupac e Snoop Dogg, entre muitos outros, ele usava o nome Zevlove X e rimava no grupo KMD com o irmão, Subroc.

Dois acontecime­ntos foram determinan­tes para a criação de MF Doom. Primeiro, seu irmão morreu num acidente. Depois, ele foi demitido da gravadora ao tentar usar uma figura enforcada na capa de um disco. Dumile sumiu do mapa, se casou e se tornou pai.

Em 1999, ele apresentou MF Doom em “Operation: Doomsday”, disco em que sampleia de “Scooby-Doo” a Sade. Começoua usar a máscara comouma forma de se posicionar contra a tendência fashionist­a de ostentação que o hip-hop vinha ganhando e também para, em suas palavras, “controlar a narrativa” de sua imagem pública. Deixou um buraco na máscara na altura da boca para conseguir tomar cerveja.

Nos anos 2000, ele lançou diversos discos, incluindo “MM… Food”, de 2004, em que fala de tudo como se estivesse falando de comida —ou o contrário. Mas sua obra-prima é um clássico do undergroun­d que envolve um pouco de tudo o que faz de Doom uma lenda.

“Madvillain­y” é o álbum que ele fez com o produtor Madlib, habilidoso caçador de samples e criador de loops, que àquela altura tinha pausado o rap para fazer um projeto de jazz fictício em que ele tocava todos os instrument­os.

Seu apelido, “the unseen”, ou aquele que não se vê, revela que o produtor era tão difícil de encontrar quanto o parceiro. É também o nome de um disco do Quasimoto, projeto em que Madlib rima com voz de gáshélio sob o ponto de vista de um alienígena que chega à Terra.

Dumile exigiu da gravadora Stones Throw Records um adiantamen­to de US$ 1.500 para gravar três músicas. O selo gastou o que tinha com as passagens de Dumile a Los Angeles. Chegando ao estúdio de Madlib —na casa que era também sede da gravadora—, sua empresária pediu logo o dinheiro.

Peanut Butter Wolf, chefe do selo ,ficou en tretendo a empresária enquanto Doom e Madlib fumavam um baseado no estúdio. Na visão dele, os efeitos da erva e das batidas de Madlib seriam mais convincent­es do que qualquer proposta formal.

O contrato foi assinado num prato de papelão. Toda a situação exalava o clima undergroun­d e experiment­al que esses artistas representa­vam.

Madlib passou duas semanas em São Paulo, visitando toda lojinha de discos que conseguiu e captando todo tipo de sample —incluindo de música brasileira, especialme­nte a tropicália— que foi capaz. Entre as dezenas de samples usados, há segundos de músicas de Maria Bethânia e Gal Costa nas tramas sonoras complexas e refinadas do produtor.

“Eu estava na sintonia do Brasil, sentado no meu quarto fumando uma erva péssima e sampleando”, Madlib disse ao Pitchfork. Numa era inocente da internet, prévias das gravações vazaram no Brasil.

Doom regravou as vozes para soar mais tranquilo. Um artesão das palavras, também refez parte de suas letras, forjando frases que rimam não só uma com a outra, mas com palavras que rimam entre si, em poemas sem ganchos ou refrões e uma estrutura de estrofes nada convencion­al.

Madlib até tentou mexer nos instrument­ais, mas perdeu duas caixas com os discos comprados no Brasil, os quais havia sampleado, na viagem devoltaaos­EstadosUni­dos.Ele nem sequer sabia de onde havia retirado os sons que usara.

“Madvillain­y” é sensível e provocador, um encontro entre dois ermitões que parecem ter sido feitos um para o outro.

“Madlib me dava outro CD com bases e eu ia escrevendo”, disse Doom ao Red Bull Academy há dez anos. “A gente parava, e ele ia lá, fazia outra batida e nós ouvíamos. Era isso. Quase não nos falamos. Foi mais por telepatia. Conversáva­mos através da música.”

“Madvillain­y” saiu em 2004 com boas vendas e foi instantane­amente aclamado pela crítica. Ganhou fãs entre gente como Thom Yorke, líder do Radiohead, e na música eletrônica, como Four Tet, que remixou o álbum inteiro. MF Doom gravou com o Gorillaz e com oprodutor Danger Mouse, além de dividir os microfones com o fã Earl Sweatshirt num projeto do produtor Flying Lotus.

Era inegável que história estava sendo feita, com Doom e Madlib elevando a patamares inéditos a arte de rimar sobre batidas. Era um disco de rap, mas com melodias tão bem trabalhada­s e uma liberdade de espírito que poderia ser também uma encarnação pop e psicodélic­a do jazz —intergalác­tica como as filosofias e os discos de Sun Ra, de quem ambos eram fãs.

Daniel Dumile se foi como sempre viveu —nas sombras, cercado de mistério. MF Doom foi um anti-herói que não usou as próprias falhas como contrapont­o a uma personalid­ade de virtudes, mas que fez dessas falhas sua própria virtude. O vilão dos vilões, com um legado que tende a crescer conforme for mais conhecido.

 ?? Reprodução ?? O rapper MF Doom na capa do disco ‘Madvillain­y’, assinado pelo duo Madvillain, formado por Doom e pelo produtor Madlib
Reprodução O rapper MF Doom na capa do disco ‘Madvillain­y’, assinado pelo duo Madvillain, formado por Doom e pelo produtor Madlib

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