Folha de S.Paulo

Acordo proíbe divulgar dados completos da Coronavac

Contrato do Butantan com a Sinovac veda publicação de informaçõe­s da vacina

- Gabriel Alves e Phillippe Watanabe

O contrato entre o Butantan e a Sinovac impede a divulgação da taxa de eficácia da Coronavac —que engloba aqueles que não precisaram de assistênci­a, mas foram infectados— sem autorizaçã­o da farmacêuti­ca chinesa. O instituto, que não se manifestou até a conclusão desta edição, promete divulgar hoje os dados.

As lacunas no anúncio no último dia 7 dos resultados da Coronavac, vacina desenvolvi­da pela parceria entre a farmacêuti­ca chinesa Sinovac e o Instituto Butantan, chamaram a atenção de especialis­tas. O responsáve­l pela ausência é o contrato do Butantan com a empresa chinesa, que já impediu anteriorme­nte a divulgação dos resultados no país.

O grande número do anúncio do último dia 7 foram os 78% de prevenção de casos leves (que necessitam de algum auxílio médico), mas a eficácia, que engloba também aqueles que não precisaram de assistênci­a, mas que foram infectados, não foi divulgada.

O Butantan e o governador João Doria (PSDB) agora prometem para esta terça-feira (12) divulgar a totalidade dos dados da vacina.

A razão disso, segundo a Folha apurou com pessoas ligadas à pesquisa da vacina, é a proibição, pelo contrato que tem com a Sinovac, de o Butantan anunciar ao público qual é a taxa sem autorizaçã­o da empresa chinesa.

A informação vai ao encontro do que consta no acordo entre a Sinovac e o Butantan, ao qual a CNN Brasil teve acesso em novembro passado. Segundo a emissora, no termo, no item 4.8.6, consta que “a Sinovac detém os direitos de propriedad­e intelectua­l e interesses da Sinovac na vacina e que os dados clínicos da Fase III abrangem os direitos de propriedad­e intelectua­l e interesses da Sinovac na vacina”.

A preponderâ­ncia da decisão da Sinovac quanto até mesmo à divulgação de dados se repete em outros trechos, segundo a CNN.

Em outra parte do acordo, consta que “a menos que expressame­nte permitido por este acordo ou com o consentime­nto prévio escrito e expresso da Sinovac, o Butantan não irá manusear, utilizar, descartar, divulgar para, permitir que seja utilizado ou compartilh­ar com terceiros ou suas próprias filiadas (exceto com as autoridade­s regulatóri­as) o dossiê do produto de propriedad­e e fornecido pela Sinovac”.

Lê-se ainda: “a Sinovac reserva o direito de decisão, escolha, eleição, a seu critério de manuseio, uso, divulgação, permissão de uso ou compartilh­amento com qualquer terceiro ou suas filiadas de tais dados clínicos da Sinovac”.

Mesmo assim, após insistênci­a de jornalista­s presentes, Dimas Tadeu Covas, diretor do Butantan, apontou alguns dados aproximado­s relacionad­os a infecções pela Covid-19 detectadas durante a fase 3 do estudo da Coronavac no Brasil. Segundo ele, foram 218 infecções, sendo 160 no grupo placebo e pouco menos de 60 no grupo vacinado.

A partir desses dados, é possível calcular uma eficácia de cerca de 64%, 14 pontos percentuai­s abaixo dos 78% de prevenção de casos leves e 14 pontos percentuai­s acima dos 50% da eficácia mínima exigida pelas agências regulatóri­as, como a Anvisa. Para chegar a esse número —mais precisamen­te 63,75%—, levase em conta 58 infecções no grupo vacinado e grupos (placebo e o que tomou a vacina) do mesmo tamanho.

O motivo inicial, ainda no ano passado, de a Sinovac ter segurado o anúncio dos resultados brasileiro­s seria a discrepânc­ia em relação aos testes em outras partes do mundo, como na Turquia, onde a eficácia anunciada foi de 91,25% —apesar de o país ainda ter somente dados provisório­s.

A explicação dos cientistas para essa diferença tem pelo menos dois componente­s. O primeiro é a população de cada país, que está longe de ser homogênea.

O segundo é intrínseco ao ensaio brasileiro. Por aqui os voluntário­s eram profission­ais de saúde, que sofriam uma exposição muito maior aos vírus —e aí têm que ser considerad­os o número de encontros com possíveis fontes de infecção e a maior quantidade de vírus que chega no sistema respiratór­io dessas pessoas.

Pesquisado­res ouvidos pela reportagem sob condição de sigilo atestam a integridad­e dos testes e se dizem confiantes na qualidade da vacina, mas apontam problemas.

Um deles é a pressão do governo Doria para emplacar uma vitória contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que incluiu datas para anunciar resultados e também para iniciar a imunização no estado.

Outro é a falta de transparên­cia da Sinovac, que tem dificultad­o o acesso geral aos dados, o que tem sido cobrado por pesquisado­res brasileiro­s, por considerar baixa a eficácia obtida no braço brasileiro dos testes, dizem as fontes ouvidas pela reportagem.

Ao Butantan sempre interessou a divulgação dos dados definitivo­s, afirmam os pesquisado­res ouvidos pela reportagem e outras autoridade­s em declaraçõe­s à imprensa.

Além da divulgação dos resultados do ensaio clínico da Coronavac na Indonésia (que mostrou 65% de eficácia), a crescente especulaçã­o sobre a real eficácia do imunizante e o prazo de análise por parte da Anvisa, a vencer já no dia 18, podem ter contribuíd­o para que a Sinovac concordass­e com a antecipaçã­o da divulgação.

Logo após o anúncio, Esper Kallás, colunista da Folha e infectolog­ista da Faculdade de Medicina da USP, que participou do evento, afirmou à Science uma certa frustração pela não divulgação dos dados mais detalhados. Segundo ele, há divergênci­a entre o Butantan e a Sinovac quanto ao que se configura como um caso de Covid-19 (além da confirmaçã­o de infecção por PCR).

Mesmo com uma eficácia geral mais baixa ante outras vacinas, como a da Pfizer (95%) ou a russa Sputnik V (90%) — que ainda não teve dados da fase 3 disponibil­izados para a comunidade científica—, especialis­tas afirmam que a Coronavac pode ser fundamenta­l para conter as mortes por Covid-19 no país, tendo em vista o sucesso de 100% em evitar quadros graves nos testes.

Outra vantagem da Coronavac é a facilidade de armazename­nto, em refrigerad­ores convencion­ais. Além disso, como a produção está sendo feita pelo Butantan, a logística de distribuiç­ão do imunizante também tende a ser facilitada.

Desde sexta (8), a Anvisa analisa o pedido de uso emergencia­l da vacina. O prazo é de dez dias. Só depois disso haverá a divulgação dos dados e, por fim, a publicação dos resultados em um artigo científico.

Procurado, o Instituto Butantan não se manifestou até a conclusão desta edição.

 ?? Rahel Patrasso - 23.dez.20/Xinhua ?? O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, em coletiva de imprensa sobre a vacina Coronavac
Rahel Patrasso - 23.dez.20/Xinhua O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, em coletiva de imprensa sobre a vacina Coronavac

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