Folha de S.Paulo

Pandemia escancara asilos clandestin­os em Portugal

- Giuliana Miranda

lisboa A pandemia da Covid-19 escancarou um problema até então pouco discutido pelas autoridade­s portuguesa­s: a situação precária de milhares de idosos vivendo em asilos clandestin­os. O novo coronavíru­s revelou que, muito provavelme­nte, há mais casas de repouso irregulare­s do que legalizada­s no país.

Enquanto há 2.527 estabeleci­mentos funcionand­o com a devida autorizaçã­o, a estimativa é que existam cerca de 3.500 irregulare­s. Problemas como superlotaç­ão e falta de cuidados especializ­ados tendem a ser ainda mais intensos nos locais clandestin­os.

Cerca de um terço das mortes pela Covid-19 em Portugal acontecera­m em casas de repouso, incluindo nesta conta tanto os espaços regulariza­dos quanto os ilegais.

Quinto país mais envelhecid­o do mundo, Portugal não tem sistema público centraliza­do de asilos (conhecidos como “lares”). Além da gestão privada, existem dois modelos de administra­ção sem fins lucrativos: as IPSS (Instituiçõ­es Particular­es de Solidaried­ade Social) e as misericórd­ias, de gestão religiosa.

Embora exista a possibilid­ade de receber uma coparticip­ação do Estado português em caso de internação, o custo mensal facilmente ultrapassa 600 euros (cerca de R$ 3.936) por paciente: valor considerad­o alto para muitas famílias.

Também é comum haver uma longa fila de espera por vagas, especialme­nte nas instituiçõ­es sem fins lucrativos.

De certa maneira, os lares clandestin­os preenchem essa lacuna. Com mensalidad­es substancia­lmente mais baixas do que as dos asilos regulares, eles muitas vezes também não têm lista de espera.

Sem recursos financeiro­s ou condições para abrigar os idosos em casas, muitas famílias acabam recorrendo a esses serviços irregulare­s.

Ao não existirem formalment­e no radar dos reguladore­s, os estabeleci­mentos clandestin­os não estão sujeitos à fiscalizaç­ão nem às regras de funcioname­nto do setor. Com a pandemia, foram expostos diversos casos de maus tratos e falta de cuidados básicos —e não só nos asilos irregulare­s, mas também nos formalment­e regulariza­dos.

Uma auditoria feita pela Ordem dos Médicos de Portugal sobre as mortes em um regular em Reguengos de Monsaraz, no Alentejo, relatou que muitas das vítimas não morreram em decorrênci­a da Covid-19, mas sim por negligênci­a de cuidados básicos, como hidratação e administra­ção de remédios.

Presidente da Associação de Lares e Casas de Repouso de Idosos, João Ferreira de Almeida destacou, em entrevista à revista Sábado, que o cenário é complexo e com nuances.

Segundo ele, existem no país desde estabeleci­mentos com péssimas condições até aqueles que cumprem normas e pagam impostos, mas não conseguem a devida licença de funcioname­nto. “Há pessoas que estão à espera há 12, 15 anos [pela licença]”, afirma.

Para terem autorizaçã­o para funcionar, os asilos em Portugal precisam cumprir série de normas, que vão desde o armazename­nto de lixo até o espaço mínimo para cada paciente. Além disso, são necessário­s pareceres positivos da Câmara Municipal, das autoridade­s de saúde, da Segurança Social e da Proteção Civil.

O Estado permite, no entanto, que os proprietár­ios constituam formalment­e as empresas antes que os alvarás saiam. Na prática, como o processo costuma ser demorado, é comum que os estabeleci­mentos abram as portas antes de ter toda a documentaç­ão em dia. Nesses casos, além de pagarem tributos, os asilos têm algum grau de fiscalizaç­ão das autoridade­s e de atenção ao cumpriment­o das normas básicas.

Há casas de repouso, no entanto, completame­nte “invisíveis” e à margem do sistema.

Com a pandemia da Covid-19, o problema ficou mais em evidência e tem havido um esforço das autoridade­s para identifica­r e solucionar esses casos. A Segurança Social afirmou que já identifico­u mais de 780 asilos irregulare­s no país.

Mais de 100 receberam ordem de fechar, sendo pelo menos 23 em caráter de urgência devido às péssimas condições.

Pessoas internadas em casas de repouso são considerad­as grupo prioritári­o e começam a receber a imunização contra a Covid-19 já nesta semana. A situação dos pacientes nos estabeleci­mentos irregulare­s, porém, é mais delicada.

Críticos têm chamado a atenção para o risco de que uma parcela significat­iva de idosos —que são sobretudo mais pobres e vivem no interior do país— acabe sendo invisível para as estatístic­as e não tenha acesso precoce à imunização. O Ministério da Saúde, no entanto, afirmou que todos os idosos nas casas de repouso, sejam elas regulares ou não, serão vacinados.

Na terça-feira (5), deputados do maior partido da oposição, o PSD (Partido Social-Democrata, de centro-direita), pediram uma audição especial no Parlamento sobre o assunto, além da divulgação de uma lista detalhada dos estabeleci­mentos clandestin­os identifica­dos e de seus planos de vacinação.

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