Folha de S.Paulo

Mamãe, eu quero

Histéricos da nova direita têm adoração orgásmica do messias político

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

No assalto ao Capitólio, todos temos os nossos momentos preferidos. O meu dá pelo nome de Jacob Anthony Chansley: rosto pintado, chifres de viking, ele apresentou-se ao mundo como “QAnon Shaman”. Um guerreiro, na sua imaginação, que combate dia e noite um complô mundial de pedófilos e esquerdist­as (para ele, mera redundânci­a).

Em tempos mais primitivos, o nosso Jacob estaria no manicômio —ou, para não sermos tão drásticos, no anonimato. Mas as redes sociais fizeram o que Nelson Rodrigues já tinha descrito décadas atrás: permitiu aos imbecis subir ao caixote e conquistar milhares, milhões de imbecis como eles.

Nada contra: sou inteiramen­te a favor da liberdade de expressão. Mas não sou cego para as consequênc­ias imprevista­s desse precioso direito.

Soube, lendo os jornais, que o nosso viking é um rapaz de 33 anos, ator falhado, que vive com a mãe. Não estou espantado. Como dizia Salvador Dalí sobre a sua primeira experiênci­a masturbató­ria, foi a partir desse momento que ele, Dalí, deixou de ser um histérico.

Hoje, a masturbaçã­o é democrátic­a; mas a capacidade de ter uma vida profission­al e emocionalm­ente independen­te não é. Razão pela qual os histéricos da nova direita sublimam os seus fracassos pessoais com a adoração orgásmica de um messias político.

Quem não vê em muitos deles o tipo de adoração homoerótic­a que os fascistas tinham pelos seus líderes deve consultar urgente o oftalmolog­ista.

Mas a nova direita não sofre só de ignorância sentimenta­l; a ignorância política é bem pior. Em 2016, antes da eleição americana, escrevi nesta Folha que pensar Trump na Casa Branca seria o mesmo que entregar uma filha a um marginal.

Nos anos seguintes, não tive sossego: entre insultos e ameaças, havia quem enviasse fotos do meu livro “As Ideias Conservado­ras” reduzido a cinzas.

Achavam que tinham sido enganados pelo título (isso porque não tinham lido o subtítulo: “Explicadas a Revolucion­ários e Reacionári­os”). Mas, entre os emails delirantes que recebi, os melhores eram enviados pelos teóricos da nova direita. Eu, velho conservado­r liberal, não entendia o novo tempo nem a genialidad­e dos novos líderes, acusavam eles.

E até falavam da importânci­a da “vontade geral”, conceito belíssimo que foi inventado por um conhecido homem da direita, Jean-Jacques Rousseau. De fato, não entendi: após quatro anos, Trump entrega a Casa Branca, a Câmara dos Representa­ntes e o Senado aos democratas. Não se via uma proeza dessas desde a derrota de Herbert Hoover, em 1932.

A perda do Senado, aliás, representa bem a sua genialidad­e: como explica o Wall Street Journal, jornal insuspeito de simpatias esquerdist­as, a patológica obsessão de Trump com a “fraude” eleitoral desmobiliz­ou o eleitorado republican­o da Geórgia. Resultado?

Venceram os democratas, o que significa que bastam agora 51 votos no Senado para desfazer parte do legado de Trump, a começar pela política fiscal.

Os democratas têm esses 51 votos porque contam com 50 senadores e ainda o voto de desempate da vice Kamala Harris. Se isso é genialidad­e, eu tremo só de pensar o que será a estupidez.

De resto, mudanças profundas no sistema político para beneficiar os democratas nas próximas gerações ( fim do “filibuster”, Washington e Porto Rico como novos estados, quem sabe o aumento de vagas na Suprema Corte etc.), apesar de improvávei­s, não são mais impossívei­s.

Eu, um dinossauro, sei que caminho para a extinção no meio de tantos meteoritos extremista­s. Mas, para a nova direita que ainda está disponível para escutar a velha, aqui ficam cinco conselhos:

1) Desconfie sempre de homens providenci­ais; a espécie “Homo sapiens” não produz artigos desses.

2) Desconfie de qualquer utopia, revolucion­ária ou reacionári­a, que promete a redenção absoluta dos males presentes; a política é a arte do possível, não do impossível.

3) Desconfie da sabedoria da multidão; a tirania não é uma questão numérica e tanto pode ser exercida por um homem ou por milhões deles.

4) Desconfie de quem despreza ou hostiliza as instituiçõ­es independen­tes que sustentam a democracia liberal (Judiciário, Parlamento, imprensa etc.); elas são obstáculos, sim, mas ao poder arbitrário do chefe.

5) Desconfie de quem fala alto demais, ou grosseiram­ente demais; a civilidade é a primeira expressão de uma alma ordenada. (E mais um, para os vikings que persistem: Arranje trabalho e saia de casa da mamãe.)

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Angelo Abu

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