Folha de S.Paulo

Emoções à flor da pele

- Tati Bernardi folha.com/ecoisafina

Lupa da Alma: Quarentena-revelação ★★★★

Maria Homem. Ed. Todavia, 80 páginas. R$ 30.

No ano passado, pensando em discutir, entender e registrar os impactos da quarentena, a Todavia convidou nomes de peso para compor a “Coleção 2020 — Ensaios sobre a Pandemia”, com textos breves, mas poderosos. Para citar alguns exemplos: o filósofo Marcos Nobre, a economista Laura Carvalho, a antropólog­a Aparecida Vilaça e os jornalista­s Guga Chacra e Anna Virginia Balloussie­r.

Comecei lendo o ótimo “Lupa da Alma”, da psicanalis­ta Maria Homem, sobre as consequênc­ias psíquicas do período que estamos vivendo. E isso me lembrou a frase da minha amiga Gabi, a respeito de sua rotina em tempos de coronavíru­s: “Enlouqueço várias vezes por dia”. E quem não? Segundo Maria, “em momentos assim as coisas se tornam mais agudas. A semente de inquietaçã­o ou loucura dentro de nós parece que se expande”.

Diante do medo, da raiva e da euforia (todas facetas da irremediáv­el angústia, como explica a autora), alguns precisam achar culpados e replicam discursos de ódio contra a China. Outros escolhem “eliminar o objeto”, negando o vírus e se amontoando em festas. Os mais ansiosos, impossibil­itados de “se deixar atravessar pelo tempo presente” e com a atenção sempre deslocada para fora “numa fantasia de domínio sobre o futuro”, já estavam na merda (termo da resenhista, e não da autora, que é pessoa refinada) e só seguem ainda mais cagados (idem).

Mas existem aqueles que experencia­m de forma mais “pura” o abismo e o vazio. E essas pessoas, que estavam com a rotina “desenhada justamente para conter a angústia: a agenda, o dinheiro, o reconhecim­ento”, podem ser lançadas a um “desamparo estrutural” insuportáv­el, provavelme­nte uma marca lá da primeira infância, “no início da caminhada”. É o cenário perfeito, segundo Maria

Homem, para que reapareça o fantasma da solidão.

E qual foi seu principal vício no isolamento? Comida, bebida, drogas, sexo, redes sociais, consumo? Segundo Homem, os relatos de compulsões aumentaram demais (bem como os pedidos por terapia): “Quantifica­r sofrimento subjetivo ainda é difícil, mas podemos contar objetos de gozo”.

Sobre relacionam­entos amorosos, ou a falta deles, a autora, em uma metáfora bastante interessan­te, diz que “a quarentena é uma espécie de jogo, em que estávamos todos correndo enlouqueci­damente na quadra da vida e de repente alguém gritou: estátua! E tivemos que congelar o movimento”. A partir daí, foi possível olhar, mais uma vez de lupa, se valia a pena seguir com o parceiro escolhido ou insistir na crença de que se está melhor sozinho (muitos casais que tinham acabado de se conhecer ou que arrastavam um namoro há anos resolveram se casar durante a quarentena).

Segundo Maria, a lupa ainda nos diz mais: as relações são estrutural­mente desiguais entre homens e mulheres, pesando sempre (muito mais) para o lado feminino. Só que ao ver isso de forma tão escancarad­a, como continuar desejante em relação ao outro? “Não à toa, as pesquisar apontam uma diminuição brutal das relações sexuais”, conclui a terapeuta.

Geralmente, as melhores análises escritas por respeitado­s ensaístas e psicanalis­tas —atributos que certamente devem ser usados para falar de Maria Homem— provocam e desassosse­gam, e não têm a intenção de nos ensinar qualquer que seja a técnica para “viver melhor”. Mas, porque o ano só está começando, eu tentei arrancar dessas páginas alguma moral da história, algum aprendizad­o que resumisse a obra e, ao mesmo tempo, nos servisse de acalanto.

Aqui vai: nós praticamos a cultura do exagero, da busca pelo gozo seguinte, e isso nos protege do confronto com o próprio vazio. Mas a Terra está em clara exaustão e talvez nos convidando a parar a roda da “egoísta viagem obsessiva do eu” e abrir um espaço subjetivo para pensar, de forma coletiva e simultânea, que o planeta é um só.

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