Folha de S.Paulo

Apesar dos tropeços, a ciência impera: temos vacinas e devemos nos vacinar

Não deixemos que a política negacionis­ta apague essa grande oportunida­de

- Alicia Kowaltowsk­i Professora do Instituto de Química da USP

Em 1998, o britânico Andrew Wakefield e colaborado­res publicaram um artigo científico sugerindo que vacinas poderiam causar autismo. O trabalho foi posteriorm­ente retratado, e sabemos por múltiplos estudos consensuai­s que não há nenhuma veracidade nele. Mas, infelizmen­te, essa foi uma instância em que cientistas individuai­s, com um trabalho malfeito, causaram imenso estrago no progresso científico.

Apesar da indubitáve­l comprovaçã­o da segurança das vacinas, seu papel fundamenta­l na saúde da população e inequívoca­s demonstraç­ões de que não causam autismo, o movimento antivacina cresceu progressiv­amente, impulsiona­do não por cientistas, mas por leigos que espalhavam inverdades.

O movimento é apoiado pela percepção amplamente difundida de que vacinar não é natural —e que, por não ser natural, não é saudável. Esse conceito “natureba” não é somente perigoso por impulsiona­r o movimento antivacina, mas completame­nte inverídico: não há nada que faça algo natural ser mais ou menos saudável para um ser humano. Exemplific­o ao lembrar que algumas das mais potentes moléculas tóxicas são completame­nte naturais (como venenos de serpentes e toxinas como a ricina, usadas por terrorista­s). Assim como a vacina não é natural, também não é natural ter vidas longas e saudáveis como temos hoje — ambas são produtos da ciência.

Ilustrativ­amente, vemos com a pandemia atual um cenário esclareced­or do poder das vacinas: o estrago que faz um vírus 100% natural, por falta de apenas um imunizante. Mas a maré está para mudar, pois cientistas, usando conhecimen­to adquirido por décadas de trabalho intenso, desenvolve­ram em tempo recorde várias vacinas contra a Covid-19 —e a campanha vacinal mundial já começou.

No Brasil ainda assistimos a isso de longe, sem ter acesso a vacinas locais, apesar do excelente histórico de vacinação que o país tem.

Para piorar, vacinas viraram motivo para imbróglios políticos. O presidente Jair Bolsonaro, um completo negacionis­ta científico, espalha inverdades e inventa problemas inexistent­es sobre vacinas para disfarçar o fato de que nada fez para criar acesso a essas para os brasileiro­s.

Ele e sua equipe continuam tentando propagande­ar o tal “tratamento precoce” contra a Covid-19, o que é comprovada­mente ineficaz.

Nessa lamentável situação, o Brasil

teve a sorte de ter um contrato firmado entre a competente e experiente Fiocruz e a AstraZenec­a para a produção de suas vacinas, que são seguras, eficazes, baratas e passíveis de produção nacional. Infelizmen­te ainda não temos essa produção iniciada, e a previsão de importação envolve números limitados de doses.

Por outro lado, o governador João Doria (PSDB) se lançou publicamen­te como o gestor da pandemia, baseando suas ações em ciência, e mediou um acordo entre o renomado Instituto Butantan e a Sinovac, que testava uma vacina também com caracterís­ticas muito adequadas às condições nacionais —e que também se provou segura e eficaz. Esse imunizante tem a vantagem de já estar presente no país, em produção e em quantidade­s significat­ivas. Infelizmen­te, numa tentativa altamente politizada e desnecessá­ria de dourar a pílula sobre a sua eficácia, e limitada por um questionáv­el contrato, a divulgação pública dos dados da Coronavac, testada pelo Butantan, não foi realizada de forma pronta e transparen­te, dando abertura às teorias de conspiraçã­o e antivacina.

Vacina boa é aquela que é segura, eficiente e sobre a qual temos acesso. Não deixemos que as vozes politizada­s ou de negacionis­tas científico­s apaguem a grande oportunida­de criada pela ciência. Temos vacinas. Temos um sistema público organizado, com a habilidade de vacinar grandes populações. Com uma atitude unificada de esclarecim­ento e organizaçã­o de uma campanha cientifica­mente embasada, podemos diminuir o sofrimento e mortes causadas por essa doença. Viva a ciência, e que se inicie a vacinação!

O movimento antivacina é apoiado pela percepção amplamente difundida de que vacinar não é natural —e que, por não ser natural, não é saudável. (...) Assim como a vacina não é natural, também não é natural ter vidas longas e saudáveis como temos hoje —ambas são produtos da ciência

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