Folha de S.Paulo

Os curadores do mundo

Ideia da liberdade de expressão nasceu do ceticismo moderno; quem detém a verdade?

- Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo

Por um bom tempo alimentamo­s a ideia de que a internet as redes sociais forjariam uma imensa ágora digital. Ainda do projeto Gwan, que conheci nos anos 1990, quando estudava em Barcelona. Tudo funcionava no sótão de um velho prédio no bairro Gótico. A ideia era forjar música misturando sons de todo o planeta para ser transmitid­a em todos os meios, nas primeiras horas do ano 2000.

A ideia era ótima. Bach se fundiria com o nosso samba de roda e todos dançaríamo­s de mãos dadas, durante um minuto, no que seria o primeiro ato da “sociedade civil mundial”. Era isso que embalava a turma nas madrugadas frias de Barcelona, naquele sótão empoeirado e forrado de computador­es.

Na largada do novo milênio nada aconteceu e nunca mais ouvi falar daquela música. Mas as redes sociais explodiram e de algum modo mantiveram viva a ideia da ágora universal.

As redes funcionari­am com base na neutralida­de, no mais amplo pluralismo, e as regras não envolveria­m discrimina­ção de conteúdos. Viria daí diálogo e aproximaçã­o dos divergente­s.

O resultado, todos sabemos, foi o contrário. Ao invés da aproximaçã­o veio a guerra digital.

Mesmo assim se preservou a ideia de que as redes manteriam sua neutralida­de. E resistiria­m aos grupos difusos e cada vez mais fortes na opinião pública e nas empresas.

Intuo que chegamos a um ponto de virada. As redes parecem ter jogado a toalha. É o que sinalizam os desligamen­tos recentes. Eles envolvem um claro juízo político e vão muito além da punição que precisa ser feita, dentro da lei, para quem promove violência, morte, suicídio, ódio racial ou religioso e afins, seja de que lado político for.

As redes agiram assim porque podem. São empresas privadas, suas regras, vagas e passíveis de ampla interpreta­ção. Um amigo tentou me convencer que deveríamos confiar na sua curadoria e “bom senso” e que cortar estas e não aquelas contas seria sempre o melhor para a civilizaçã­o e para democracia.

Não sei por que (talvez seja a idade), tornei-me cético demais para acreditar nessas coisas. Aliás, depois de anos lendo sobre as origens da liberdade de expressão, descobri que ela nasceu precisamen­te do ceticismo com a “verdade” e a infalibili­dade de seus juízes.

É o sentido da frase desconfiad­a da chanceler Angela Merkel, dizendo “problemáti­co” o banimento do presidente americano das redes e afirmando a liberdade de expressão como um “bem fundamenta­l”, a ser disciplina­do pela esfera pública, não por um punhado de empresas.

É provável que o caminho à frente seja o da segmentaçã­o. Políticas de exclusão incentivam o surgimento de novas redes. As empresas, é previsível, agirão para preservar seu quase monopólio, e o estrangula­mento do Parler é mostra disso. A longo prazo, não creio que seja possível. Difícil imaginar três ou quatro empresas funcionand­o eternament­e como curadoria do mundo.

Há algo inútil nisso tudo. Este tema já era discutido por John Milton na sua crítica à censura de livros, na Inglaterra do século 17. A liberdade corre como água e vai buscando novos caminhos. A forte migração para novas plataforma­s, como o Signal e o Telegram, é um sinal. Como disse a jornalista Elizabeth Brown, “os problemas e as ideias que animam as pessoas não vão embora, apenas vão para o subsolo”.

Doses crescentes de vigilância social para impor a verdade trazem o velho problema da ladeira escorregad­ia. É preciso continuame­nte fechar cada espaço que se abre. No fim você precisa de uma ilha cercada por tubarões para manter tudo sob controle. Não é assim que as coisas funcionam em nossas sociedades abertas.

A ideia das ágoras universais vai naufragand­o ao sabor da radicaliza­ção e intolerânc­ia de um mundo que elas ajudaram a criar. Talvez elas tenham sido, desde sempre, uma ideia fácil demais para um mundo complicado como o nosso.

A melhor aposta é a pluralidad­e de redes. A liberdade, no zigue-zague da história, vem sempre ganhando o jogo. Pode-se desligar uma conta, aqui e ali. Mas não pode desligar o cérebro das pessoas nem o seu direito de pensar com a própria cabeça.

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