Folha de S.Paulo

Tornar americano mártir é dilema de aliados e adversário­s

- Igor Gielow

são paulo A história e a ficção são coalhadas de exemplos sobre o que fazer com líderes caídos, mas ainda potencialm­ente perigosos e com apoio popular.

A pergunta central, seja no primeiro exílio de Napoleão Bonaparte ou na morte estrepitos­a de algum anglo-saxão nas mãos de dinamarque­ses na série “The Last Kingdom” (Netflix), é o custo-benefício da criação de um mártir.

Para a sorte de Donald Trump, ele vive em 2021. Neste momento, o máximo que está posto na mesa é a possibilid­ade de ser impedido e perder os direitos políticos. Patíbulo, cabeça rolando, tripas ao solo, tudo só simbólico.

Mas a eventual castração química do animal político Trump evoca temores de uma síndrome de Elba, a ilha em que o líder francês foi exilado após ver a Europa se levantar contra seu jugo em 1814.

Em menos de um ano, Napoleão estava de volta à França e derrubou seus oponentes. Acabou parado pela derrota para os ingleses em Waterloo e mandado para outra ilha, Santa Helena, onde morreu. Mas a lição sobre o que fazer com líderes turbulento­s ficou.

Isso leva ao dilema que permeia o expresso movimento de democratas pelo impeachmen­t de Trump, iniciado a uma semana da posse de Joe Biden na Presidênci­a.

Não se trata de mérito: parece insofismáv­el o papel do atual presidente no ataque de uma turba ensandecid­a ao Capitólio. A questão é o momento da punição.

A histórica carta divulgada por todos os chefes militares americanos condenando o ataque e dizendo de seu compromiss­o de servir a Biden provou que, se Trump queria dar um golpe, esqueceu de combinar com os russos (piada inevitável).

A maioria dos republican­os se diz contra punir Trump. Há aí dois cálculos.

Um é o dos apoiadores. O presidente teve mais de 120 votos republican­os favoráveis, na Câmara dos Deputados, à sugestão de melar o pleito.

Quando esse pessoal vê o chefe indo para o cadafalso, invoca os 75 milhões de votos que ele teve e sugere que o melhor para evitar mais confusão é deixá-lo ir para algum campo de golfe em paz.

Entre esses, há interessad­os em herdar o legado trumpista, e os supracitad­os eleitores, de olho na Casa Branca em 2024. Outro grupo é o de aliados reais, que querem Trump à frente como uma força a unir tal movimento.

O presidente já se apresentou assim diversas vezes, numa encarnação tardia de um outro republican­o polêmico, Richard Nixon, que rondou o poder dos anos 1950 até sua renúncia em 1974.

Só que a verdadeira tradição americana do século 20 era outra, a do ex-presidente que se retira da linha de frente.

Trump quer romper com isso e garantir um queremismo à americana, numa referência ao movimento que pedia a volta ao poder do ditador Getúlio Vargas após sua queda, em 1945.

Na fantasia dos nativistas que invadiram o Capitólio, há uma revolução à vista que prescinde do partido, dos militares, das redes sociais amigas. Essas forças seguirão obviamente relevantes, e isso alimenta a argumentaç­ão pela decapitaçã­o do movimento.

Em oposição a esses interessad­os e aliados, há os republican­os que podem apoiar o impeachmen­t. O mais vistoso deles, segundo relatos em Washington, é o líder no Senado, Mitch McConnell.

Eles, assim como outros figurões, estão do outro lado do balcão. São pessoas que nunca toleraram a invasão do “outsider” na campanha de 2016 e, depois, tamparam o nariz.

McConnell, líder na Casa que derrubou o impeachmen­t de Trump em 2019, agora poderia votar a favor e carregar dissidente­s o suficiente para punir o presidente. Já não é uma hipótese inalcançáv­el.

A turma quer retomar o controle do Partido Republican­o. Será uma luta encarniçad­a, já contratada com Trump tendo direitos políticos ou não.

Do lado democrata, Biden deixou o afiar de facas para os democratas no Capitólio para não se antagoniza­r totalmente com os tais 75 milhões.

É improvável que ele recupere qualquer fração desse contingent­e, mas ao menos na retórica o presidente eleito sabe que precisa apelar à tal união nacional se não quiser começar o mandato com a Guarda Nacional nas ruas.

Pode ser apenas por temor. Líderes como Trump e seu discípulo Jair Bolsonaro, que já ensaia roteiro análogo para 2022, costumam jogar com a ideia de que comandam lealdades maiores do que as reais.

Como todo ídolo com pés de barro, Trump talvez fosse melhor deixado para lá mesmo, aos olhos de seus adversário­s. Sem palanque e sendo banido pelas redes sociais, que nunca reclamaram da audiência que ele lhes proporcion­ava, ele poderá falar para o vazio.

Ao que tudo indica, o mundo político em Washington não está disposto a pagar essa aposta, sob o risco de ter de lidar com ele como mártir das hordas do dia 6.

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