Folha de S.Paulo

Os garotos da esquina

‘The Wire’ faz lembrar que nem toda ficção da TV é descartáve­l

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Topa Tudo por Dinheiro’. É mestre em sociologia pela USP

Sem nada de interessan­te para ver na TV neste início de ano e sem disposição alguma para a bobinha “Bridgerton” na Netflix, resolvi me aventurar na reprise de “The Wire”, ou a escuta, na HBO. Foi como voltar a um lugar que parece não existir mais.

Exibida originalme­nte entre 2002 e 2008, num total de 60 episódios em cinco temporadas, “The Wire” é uma das realizaçõe­s mais ambiciosas da chamada era de ouro da TV americana. É uma série policial mas com a clara intenção de provocar debates que vão muito além dos crimes investigad­os.

A história se passa em Baltimore, a maior cidade de Maryland, na costa leste americana, de população majoritari­amente negra e repleta de problemas sociais.

A criação do jornalista David Simon tem a forma de um grande romance, em que os episódios são partes de algo maior, que só fazem sentido agrupados. A ótima observação é dos críticos Alan Sepinwall e Matt Zoller Seitz, que consideram “The Wire” a segunda melhor série de todos os tempos, atrás apenas de “Sopranos”.

Simon teve dificuldad­es em convencer a HBO a embarcar no projeto justamente porque o primeiro episódio não deixava claro qual era o tema da série. Como conta Brett Martin no livro “Homens Difíceis”, mesmo nos dois episódios adicionais que ele apresentou, a “escuta policial”, que dá título à série, ainda não aparecia.

Ex-repórter policial do Baltimore Sun, o principal jornal da cidade, Simon escreveu dois livros nos anos 1990 que o prepararam para desenvolve­r a série. Primeiro, acompanhou durante um ano uma divisão de homicídios da polícia. Depois, ao lado do ex-policial Ed Burns, mergulhou na rotina de uma comunidade pobre da metrópole.

Homicídios e tráfico de drogas servem como pretexto, na primeira temporada, para mostrar a realidade dos bolsões de pobreza que geram a mão de obra para a venda de heroína nas esquinas. São meninos negros, que entendem como natural o destino de trabalhar —incluindo cometer assassinat­os— para os traficante­s mais velhos.

Ao mesmo tempo, a série radiografa a hierarquia da polícia, tomando partido, é claro, dos que atuam nas ruas com equipament­os inadequado­s e expondo as preocupaçõ­es mesquinhas dos chefes com as estatístic­as criminais.

São tantos e tão bons personagen­s —entre criminosos e policiais— que é até difícil falar detalhadam­ente de alguns.

A cada temporada, novos elementos vão sendo apresentad­os. A série mostra como a decadência do porto de Baltimore afeta uma classe trabalhado­ra branca e leva o presidente do sindicato dos estivadore­s a fazer negócios com criminosos de origem europeia, incluindo o tráfico de mulheres para a prostituiç­ão.

Do outro lado da cidade, um traficante negro estuda economia na faculdade para otimizar o seu negócio. Um policial tem a brilhante ideia de remover os pequenos traficante­s para uma área decadente com o objetivo de reduzir os números de crimes na região que comanda.

A quarta temporada aborda o sistema público de educação na tentativa de entender por que as crianças preferem vender drogas nas esquinas a assistir aulas. A eleição de um novo prefeito serve para traçar um retrato pouco lisonjeiro dos políticos do Partido Democrata, que reinam na cidade há décadas.

E, na última temporada, Simon põe o próprio jornal em que trabalhou no centro da trama para expor a crise da imprensa escrita e a tentação do sensaciona­lismo.

Escrita em parceria com Ed Burns, com a colaboraçã­o de três conhecidos autores de romances policiais, George Pelecanos, Richard Price e Dennis Lehane, “The Wire” realiza o milagre de ser entretenim­ento de excelente qualidade e, ao mesmo tempo, mostrar que nem toda ficção da TV é descartáve­l.

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