Folha de S.Paulo

Trump é morto, como Inês, e agora?

Discurso político talvez tenha mudado, mas o resultado é drástico

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello Brasil!’ (Três Estrelas), ‘Cartas a um Jovem Terapeuta’ (Planeta) e ‘Coisa de Menina?’, com Maria Homem (Papirus)

De maneira aproximati­va mas substancia­l, parece-me que, com o passar dos anos, o discurso político ao redor de mim (o dos amigos ou o dos inimigos, tanto faz) muda. Talvez ele tenha mudado ou venha mudando aos poucos, mas o resultado é drástico.

Posso afirmar, sem medo de errar, que, dez anos atrás, amigos e inimigos jamais teriam me apostrofad­o do jeito que eles o fazem hoje. Isso vale sobretudo para os amigos, aliás.

Qual foi meu “campo” de experiênci­a? Sou cidadão dos Estados Unidos. No primeiro ciclo de eleições presidenci­ais nas quais fui eleitor, eu estava registrado como libertário; logo, passei para democrata.

Nos EUA, a grande maioria dos cidadãos declara qual é sua “filiação” política em qualquer ato burocrátic­o banal — por exemplo, na hora de entregar sua declaração de renda.

Antes de protestar contra um sistema que levaria os eleitores a “entregar” sua filiação política, é bom considerar que 1) a dita “filiação política” é muito diferente da adesão a um partido político tanto na Europa quanto no Brasil; 2) a tal filiação não implica nenhum direito, mas dá a possibilid­ade de influencia­r a vida política do partido nas eleições primárias, que escolhem os candidatos à presidênci­a, justamente, de “seu” partido.

Não sei se essa “volta do poder aos eleitores” teria tido sérias consequênc­ias nas eleições de 2018, no Brasil, por exemplo, mas muitos ainda pensam que o Partido dos Trabalhado­res, no Brasil, teria feito um “melhor uso” de uma candidatur­a mais alinhada com Lula, enquanto outros acreditam que aqueles teriam sido a ocasião e o momento certos de mostrar independên­cia em relação ao partido e ao passado.

Enfim, lembro esses percalços de minha filiação partidária nos EUA porque podem explicar em parte o tom das mensagens que recebi, sobretudo ao longo dos últimos meses — mensagens, importante notar, todas produzidas por alguma forma de inteligênc­ia artificial.

Digamos que o pleito de 2020 nos EUA começou com um grande “despertar” (“a wake-up call”). Dessa vez, vamos levar a sério, admitir e entender que Trump talvez pudesse ser exatamente o presidente que os EUA queriam.

A eleição de 2016, vista de longe, tinha tudo para dar “certo”, não íamos perdê-la de novo (até por ser a primeira vez em que uma mulher era uma candidata plausível aos olhos da classe média dos EUA —não era isso que a classe média intelectua­lizada queria? E agora, depois de ter se queimado com Trump, talvez as feministas chamassem Hillary Clinton de braços abertos).

Enfim, nos engajamos numa autocrític­a atenta que produziu, num ano, mais ensaios sobre “os americanos, quem são eles?” do que todos os enigmático­s anos 1930.

Mas isso não podia durar para sempre. Um presidente desastroso e repugnante (aos olhos do próprio establishm­ent republican­o) ia nos deixar melancólic­os, sem a confiança necessária para reconstrui­r um país…

Então, Trump é morto, como Inês, e agora?

Meus correspond­entes (robóticos) do Partido Democrata certamente dispunham de meu histórico eleitoral e em particular sabiam que eu já tinha sido capaz de votar nos libertário­s. Talvez tenham decidido me usar como teste para verificar a eficácia das mensagens que eu recebia. Como? Fácil.

Tenho o hábito de comprar em leilões. E, de fato, sustento as ideias nas quais acredito com fundos. Nada vultoso, mas suficiente para indicar uma reação, uma direção.

Suponho que meus colegas (os profission­ais disso) saibam disso, até porque existem e recebo regularmen­te pedidos de fundos que obviamente servem para testar os limites do meu bolso, não sua nada misteriosa relação com meu coração.

Em geral, só é permitido cooperar com causas nacionais (de sua nação), mas você pode sempre contribuir para uma ONG ou para um grupo de opinião.

Não é obrigatóri­o acreditar que a direita seja a única que “suja” a política com seu dinheiro. A esquerda também pode contribuir: no dia em que o ministro Ricardo Salles lançar suas boiadas para cima do Planalto, você vai poder contribuir com o Greenpeace, e, no dia em que a ministra Damares Alves se abster de gastar um centavo para políticas LGBT, não vai ser difícil achar causas concretas dignas de nossos investimen­tos.

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Luciano Salles

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