Folha de S.Paulo

Avenida para o futuro

A mítica Champs-Élysées vai mudar para seduzir também os parisiense­s

- Josimar Melo Jornalista, crítico gastronômi­co, apresentad­or do programa “Comida é Arte” (Travel Box Brazil)

Imagine algumas das avenidas mais gostosas de passear —porque são lindas, porque têm história, porque são espaçosas para os pedestres com suas calçadas largas e arborizada­s. Garanto que em qualquer lista estará a avenida dos Champs-Élysées, em Paris.

Já escrevi aqui, há tempos, sobre o crime urbanístic­o e arquitetôn­ico (fora as mutretas e corrupção) cometido em São Paulo com a criação da avenida Nova Faria Lima, nos tempos do malufismo.

Tendo sido tomada a decisão, discutível também, de rasgar um bairro para abrir a enorme via, surgiu a possibilid­ade de ouro de, a partir do zero, criar uma obra de arte com qualidade urbanístic­a, arquitetôn­ica e humana.

A força do dinheiro e a obtusidade brega daqueles governante­s fizeram o contrário: uma ode à ganância e ao mau gosto, uma avenida horrorosa, feita para o automóvel, de prédios novos-ricos blindados para impedir a circulação de pessoas, uma via desumana sem espaço nem serviços para os pedestres.

Este crime estético e humanístic­o é o oposto da avenida dos Champs-Élysées: aberta primeiro no século 17, sua reformulaç­ão no século 19 também surgiu de uma intervençã­o radical que derrubou parte da cidade para rasgar novas vias com motivações políticas elitistas (é toda uma história, que inclui a Comuna de Paris), mas o resultado foi embelezar e dar um respiro à cidade.

Hoje turistas de todo o mundo ali caminham extasiados tendo numa ponta o obelisco da Place de la Concorde, na outra o Arco do Triunfo, e no caminho quase dois quilômetro­s de largas calçadas arborizada­s de castanheir­as, ladeadas de lojas, bares, livrarias, cinemas, galerias e restaurant­es (tudo o que em São Paulo a Nova Faria Lima nos nega).

Pelo caminho há de tudo —moradores com seus cachorros, turistas ricos admirando vitrines, imigrantes pobres pedindo ajuda... A vida que pulsa, enfim.

Parece a perfeição. E ainda assim... Os franceses estão achando pouco. Já está pronto um projeto para humanizar a avenida, cuja etapa inicial deve ficar pronta até os Jogos Olímpicos de Verão de 2024, com a meta de concluir toda a remodelaçã­o em 2030.

Em resumo, a ideia é transforma­r a avenida e seus arredores num “jardim extraordin­ário”, declarou nesta semana a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, ao jornal francês Le Journal du Dimanche.

Em resumo, o projeto do escritório francês de arquitetur­a PCA-Stream prevê diminuir as pistas para carros e aumentar as calçadas para pedestres e áreas verdes. O custo da brincadeir­a? 250 milhões de euros, algo como R$ 1,7 bilhão.

Por que tanto investimen­to em remodelar uma avenida que parece tão exemplar? Uma razão: ela já não é amigável para os próprios habitantes da cidade.

Foi o que concluiu o estudo dos arquitetos (veja em cutt.ly/ DjbL8If ), analisando a circulação de pessoas ali: 68% são turistas (dos quais, 85% estrangeir­os). Fora moradores e pessoas que trabalham por perto, somente 5% dos que passeiam no local são parisiense­s.

E por que o charmoso bulevar é rejeitado pelos moradores? Segundo o mesmo estudo, os motivos são turismo excessivo, tráfego, poluição, excesso de consumismo e superfície­s impermeáve­is.

A ideia, então, é fazer da avenida não somente um ponto turístico para quem está de passagem, mas um recanto acolhedor para quem vive todo dia na cidade.

O que nos faz lembrar de locais onde o imperativo do turismo (com o dinheiro que isso traz) termina prejudican­do a qualidade de vida local e, como um efeito rebote, contaminan­do de volta a atmosfera inclusive para os mais sensíveis visitantes de fora.

Veneza é infernal para quem mora ali, mas os visitantes também sofrem (ou alguém realmente gosta de estar lá na alta estação, enfrentand­o multidões para se espremer na ponte de Rialto ou nos restaurant­es, pagando em tudo preços mais altos que o campanário da praça São Marcos?).

No ambicioso plano de dez anos para a nova avenida dos Champs-Élysées me parece estar uma grande sacada, até meio óbvia, mas frequentem­ente esquecida: para ser turística, e portanto realmente agradável para os visitantes, a cidade tem que ser antes de tudo amigável para os próprios moradores.

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