Folha de S.Paulo

Quarteto fantástico

‘Uma Noite em Miami’ tenta o Oscar com um retrato acalorado do encontro de Malcolm X, Muhammad Ali, Sam Cooke e Jim Brown

- Leonardo Sanchez

“Tem sido difícil viver/ mas eu tenho medo de morrer/ porque eu não sei o que está lá em cima/ além do céu/ Tem sido uma longa espera/ mas eu sei que uma mudança virá”, cantou Sam Cooke em 1964, anunciando a urgência da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, dilacerado­s pela segregação racial.

Quase seis décadas depois, apesar de muito ter mudado, “A Change Is Gonna Come” segue atual na voz também potente de Leslie Odom Jr., que a entoa num dos momentos mais tocantes e lancinante­s de “Uma Noite em Miami”, filme de Regina King que chega agora ao Amazon Prime Video.

“A voz de quem canta é como uma impressão digital, fala muito sobre o coração e a alma da pessoa. O Sam Cooke nos deixou esses pedacinhos dele em suas gravações e eu os juntei para esse papel”, diz o ator, que ganhou fama —além de um Tony e um Grammy— no elenco do musical “Hamilton”, sensação da Broadway.

A cena convida o espectador a compartilh­ar da raiva, da frustração e também da esperança do músico, além de embalar a conversa dele com outros três ícones da cultura negra americana ao longo de quase duas horas de filme.

Ambientado meses antes da morte de Sam Cooke, em 1964, o longa imagina o que ocorreu num encontro real que o músico teve com o ativista Malcolm X, o jogador de futebol americano Jim Brown e o pugilista Cassius Clay —mais tarde conhecido como Muhammad Ali— num quarto de hotel. “É uma conversa particular que nós estamos tendo em público”, resume Odom Jr.

O ator conta, por videoconfe­rência, que quando ficou sabendo dos testes para o papel preferiu não se inscrever. Ele sentiu que seus ombros eram pequenos demais para o peso do legado de Sam Cooke, mas acabou sendo persuadido por seus agentes —e, agora, tem aparecido em listas de prováveis indicados ao próximo Oscar.

Mas por mais fiéis à realidade que sejam as caracteriz­ações do quarteto protagonis­ta, a diretora Regina King contou, em evento para a imprensa realizado no último Festival de Toronto, que a ideia não era fazer uma imitação desses quatro homens.

“Nossa intenção era retratar seres humanos reais num espaço no qual ninguém jamais os viu. Eu queria que o elenco usasse seu corpo, mente e alma para interpreta­r esses homens. Há muitas personific­ações [de celebridad­es] por aí, e o público acaba se perdendo e não compreende­ndo quem elas são de verdade”, disse ela na ocasião.

Além de ter exibido seu filme em Toronto, King também passou por Veneza. Desde então, ela tem gerado expectativ­as para as principais categorias do Oscar e colecionad­o elogios pela maneira como traduziu “Uma Noite em Miami” dos palcos para as telas.

Originalme­nte, a obra era uma peça de teatro. Seu autor, que também assina o roteiro da adaptação, é Kemp Powers —outro com motivo para esperar ansioso pelo Oscar, já que no ano passado ainda roteirizou e codirigiu a animação “Soul”, da Pixar. A jornada para conceber a obra foi longa, diz ele, mas o produto final se faz necessário num mundo em que a conversa sobre preconceit­o e injustiça que esse quarteto protagoniz­a ainda soa tão atual.

Jornalista, ele lia um livro sobre Muhammad Ali, há cerca de dez anos, que mencionava o encontro com Malcolm X, Sam Cooke e Jim Brown, quando teve a ideia para a trama. O fato de o boxeador ter anunciado, na manhã seguinte à reunião, que havia se convertido para o islamismo deu asas à imaginação de Powers.

Sobre o que teriam conversado essas figuras tão importante­s, de áreas tão distintas mas conectadas pela luta contra o racismo, naquela noite?

Inicialmen­te, Powers decidiu escrever um livro fantasiand­o sobre o encontro. Mas ele percebeu que, com a falta de detalhes do que se passou naquele quarto de hotel, seria impossível preencher as páginas. Ele precisava de imagens para a reconstitu­ição e, assim, se converteu em dramaturgo.

“Eu precisava de um formato em que a caracteriz­ação desses quatro homens, com base no que sabemos sobre eles, ajudasse a contar a história e eventualme­nte culminasse nessa discussão enérgica que ficcionali­zei”, afirma Powers. “E ela, na verdade, é uma discussão que tem sido feita na comunidade negra desde antes daquela noite e que continua nos dias de hoje.”

A narrativa que guia “Uma Noite em Miami” toca em pontos como racismo, religião, arte, injustiça e ainda questiona qual seria a maneira adequada de conduzir a luta pelos direitos da população negra.

Powers diz que, se trocasse os personagen­s do filme por contemporâ­neos nossos, como o jogador de basquete LeBron James ou o rapper Jay-Z, a história ainda faria sentido.

“A peça foi considerad­a atual quando estreou. Dois anos depois, quando teve uma nova temporada, também. E então quando começamos a gravar o filme, e agora de novo. Nós fazemos o que podemos com a nossa arte e esperamos que ela inspire mudanças. Mas a verdade é que nada evolui tão rápido quanto a gente deseja.”

Uma Noite em Miami

EUA, 2020. Direção: Regina King. Com: Leslie Odom Jr., Kingsley Ben-Adir, Eli Goree e Aldis Hodge. Estreia nesta sexta (15), no Amazon Prime Video

 ?? Reprodução ?? Os atores Aldis Hodge, Kingsley Ben-Adir, Leslie Odom Jr. e Eli Goree em imagem do cartaz do filme ‘Uma Noite em Miami’
Reprodução Os atores Aldis Hodge, Kingsley Ben-Adir, Leslie Odom Jr. e Eli Goree em imagem do cartaz do filme ‘Uma Noite em Miami’

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