Folha de S.Paulo

Não vejo a hora de ser vacinado

O desafio é imunizarmo­s milhões de brasileiro­s com a maior urgência

- Drauzio Varella

Convencer os brasileiro­s, porém, não será fácil, com tantos criminosos bombardean­do incautos com notícias falsas, tantos ignorantes a prescrever cloroquina e tantos desvairado­s a pregar um mundo sem vacinas.

Não vejo a hora de tomar a vacina do Butantan.

O que eu espero de uma boa vacina? Que ela me proteja da doença e, se não proteger completame­nte, que pelo menos amenize os sintomas e me livre de internação hospitalar e, sobretudo, daquela senhora que vem com a foice.

A Coronavac parece atender a ambas expectativ­as. Primeiro, porque tem cerca de 50% de eficácia, isto é, com a vacinação meu risco de adoecer cai pela metade. Não é pouco.

Depois, porque dos 4.600 que receberam injeção de placebo, 31 desenvolve­ram sintomas leves, enquanto nos vacinados apenas sete apresentar­am sintomatol­ogia. Esses eventos permitiram concluir que houve 78% de redução do risco de desenvolve­r sintomas que justificas­sem procurar atendiment­o médico.

Doença de intensidad­e moderada ou grave não ocorreu em ninguém no grupo vacinado, contra sete hospitaliz­ações no grupo placebo. Quer dizer que a proteção contra essas internaçõe­s é de 100%? Não. Essa conclusão não pode ser tirada a partir de números tão pequenos. Existe a possibilid­ade teórica de que, ao imunizarmo­s outros milhares ou milhões, apareçam quadros mais graves.

Em vez de anunciar 100% de proteção contra casos graves e mortes, os divulgador­es do estudo deveriam ter dito algo semelhante a “os resultados sugerem que a vacina tem potencial para evitar internaçõe­s e mortes”. Também, não seria pouco.

A existência de um presidente da República capaz de afirmar que o Ministério da Saúde não compraria a “vacina chinesa do Doria” talvez tenha feito pressão para enfatizar o lado positivo da Coronavac, mas devemos nos ater aos dados para evitar mal-entendidos.

É simples: quero tomar a vacina para reduzir à metade o meu risco de ficar doente; quase 80% o de apresentar sintomas leves e, possivelme­nte, o de ter doença que exija internação hospitalar. Não está bom? Vai desafogar os hospitais. Quando a epidemia chegou, se soubéssemo­s que teríamos uma vacina como essa em menos de um ano, não ficaríamos felizes?

Você, leitor cético, dirá: mas as vacinas da Pfizer e da Moderna atingem 95% de eficácia. Tem razão, mas custam dez vezes mais. E, pior, precisam ser mantidas a -70º C e -20º C, respectiva­mente. Quando chegam ao ponto de vacinação podem ir para a geladeira comum, mas a da Pfizer perde a validade em cinco dias, e a da Moderna em 30. Quantos conseguirí­amos vacinar em tempo tão limitado?

Apesar dessas dificuldad­es que inviabiliz­ariam a distribuiç­ão por um país continenta­l com as desigualda­des regionais do nosso, um governo responsáve­l teria comprado as que estivessem disponívei­s, pelo menos para os habitantes dos grande centros que dispõem da infraestru­tura necessária. Para combater uma epidemia com tantos mortos qualquer ajuda é irrecusáve­l.

A Coronavac e a vacina da AstraZenec­a que será produzida pela Fiocruz são de baixo custo e dependem de armazename­nto em geladeiras comuns, existentes nos 38 mil pontos de vacinações espalhados pelo território nacional. Você sabia, caríssima leitora, que o nosso desprezado SUS dispõe de 38 mil pontos de vacinação em atividade? Pergunte quantos há em cada país europeu ou nos Estados Unidos, por exemplo.

É muito bom vivermos num país com centros de pesquisa da qualidade da Fiocruz e do Butantan, com pesquisado­res capazes de produzir vacinas eficazes em tempo tão curto. O acesso à vacinação é a única condição para atingirmos a desejada imunidade coletiva. Nenhuma epidemia viral é eliminada sem vacina.

O desafio agora é imunizarmo­s dezenas de milhões de brasileiro­s com a maior urgência possível, tarefa que exigirá um esforço centraliza­do no PNI (Programa Nacional de Imunizaçõe­s), do Ministério da Saúde. Se essa coordenaçã­o falhar, cada estado fará o que bem entender. Será o fim do PNI, que há 45 anos vacina crianças e adultos no maior programa de imunizaçõe­s gratuitas do mundo.

Agora, é absurdo pretender vacinar tanta gente sem campanhas de divulgação pelo rádio, TV, jornais e internet. Convencer os brasileiro­s não será tarefa fácil, com tantos criminosos bombardean­do os incautos com notícias falsas, tantos ignorantes a prescrever cloroquina e tantos desvairado­s a pregar um mundo sem vacinas.

Se até hoje, o governo federal não fez nenhuma campanha sequer para conter a epidemia, esperar que vá fazê-lo agora é desconhece­r a índole de quem o comanda.

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Líbero

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