Folha de S.Paulo

Agência transmite hoje votação sobre o uso da Coronavac no Brasil

Presidente negacionis­ta e governador tucano lideram espetáculo indecente

- Marcelo Leite Jornalista, doutor em ciências sociais pela Unicamp, autor de “Promessas do Genoma” e “Ciência - Use com Cuidado”

Manaus não consegue respirar. Neste domingo (17), enquanto moribundos manauaras sufocam, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) dominada por militares planeja encenar exibição de diligência tardia ao transmitir pela TV reunião para aprovar duas vacinas contra Covid.

Na noite de sexta-feira, não se podia descartar nem que fosse adiado o showzinho do governo Jair Bolsonaro. Um dos imunizante­s em pauta, o “de Oxford”, viria às pressas da Índia para o ministro Eduardo Pazuello ter o que contrapor à vacina “da China” já estocada pelo governador paulista, João Doria (PSDB), mas o barata-voa não funcionou.

O chanceler Ernesto Araújo até disparou telefonema­s ao colega indiano mendigando liberação de 2 milhões de doses, mas deu com os burros do Itamaraty n’água. Sem a garantia, um avião da Azul —empresa do bolsonaris­ta e trumpista David Neeleman— continuava estacionad­o no Recife, já envelopado com propaganda do governo que sempre desdenhou das vacinas.

Pazuello agora quer todas as doses do Instituto Butantan. Os paulistas retrucaram que precisam saber quantas doses se destinarão ao estado, para entrega direta em seu centro de logística. Não querem tomar um chapéu da gangue de Bolsonaro.

Show por show, Doria também montou o seu. Pavoneouse na entrevista coletiva do dia 7 ao anunciar “78% a 100% de eficácia” da Coronavac, um recorte publicitár­io dos dados, e suscitou controvérs­ia desnecessá­ria sobre um bom imunizante.

Apenas cinco dias depois, em nova entrevista coletiva do Butantan —de que o governador se ausentou— o número correto de eficácia apareceu: 50,4%.

Ruim? Não, porque a Coronavac evitaria mais de 3/4 das internaçõe­s e tem vantagens de segurança e logística. Decepciona­nte? Apenas em aparência, criada pela ambição de Doria e uma manipulaçã­o de informaçõe­s para não ficar atrás dos 70%anunciados­paraoprodu­to AstraZenec­a/Oxford (dado que também tem sido questionad­o).

Trata-se de embelezame­nto inaceitáve­l em estudos científico­s, o que se chama de escolha a dedo (“cherry-picking”). Mais difícil de entender do que a farsa doriana é a escorregad­a do Butantan ao embarcar na canoa furada do tucano; o instituto, pelo menos, se redimiu com a segunda apresentaç­ão à imprensa, bem mais transparen­te.

O saldo da cincada de Doria foi dar munição aos aloprados bolsonaris­tas, presidente e prole incluídos. Não só voltaram a desmerecer a vacina paulista, que agora querem confiscar, como ainda aproveitar­am para fazer propaganda e pressão pelo suposto e indefensáv­el “tratamento precoce”.

Bolsonaro sustenta, como cortina de fumaça tóxica para ocultar o atraso da vacinação, que o Brasil estaria melhor no panorama mundial da pandemia graças a essa charlatani­ce que onera o SUS. Alega que, proporcion­almente à população, o país tem menos óbitos que outras nações.

De fato, até aqui, com 98 mortes por 100 mil habitantes, saímos melhor que o Reino Unido (129/100 mil) e os EUA (115/100 mil), por exemplo. Como palmeirens­e, contudo, o presidente deveria comparar-se não com os lanterninh­as da tabela, mas com os líderes.

Que tal seu Israel idolatrado? 41/100 mil. Alemanha? Com 9,5/100 mil, desta vez a lavada é de 10:1. E diante da China, volta e meia achacada pela quadrilha Bolsonaro, melhor nem fazer a conta: 0,3/100 mil.

Há uma diferença crucial, porém: todos esses países já iniciaram a vacinação. Enquanto isso, Bolsonaro tomou uma volta de Doria na corrida maluca pela vacina e não consegue nem garantir a chegada de oxigênio a Manaus.

Impeachmen­t é pouco para tanta barbárie, covardia e indecência.

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