Folha de S.Paulo

País só terá doses em janeiro para 30% do previsto na 1ª fase

Plano previa 15 milhões de vacinados na 1ª etapa, mas serão poucas doses

- Natália Cancian

Caso a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) dê aval neste domingo (17) para as primeiras vacinas contra a Covid, o Brasil pode ter doses em janeiro para apenas 30% do público previsto na primeira fase do plano nacional de vacinação.

Até então, essa fase, a primeira entre os prioritári­os, era planejada para ocorrer com trabalhado­res de saúde, idosos acima de 75 anos ou asilados, população indígena e povos ribeirinho­s, que somam 14,8 milhões de pessoas.

As vacinas submetidas à análise da Anvisa neste domingo, no entanto, devem atingir apenas 5 milhões de pessoas caso tanto os pedidos da Fiocruz e Butantan sejam aprovados, segundo cálculo inicial da Saúde apresentad­o em reunião com prefeitos.

Isso ocorre devido ao fato de que, embora os dois laboratóri­os peçam aval juntos a 8 milhões de doses, parte delas (caso de 6 milhões do Butantan) exige uma segunda dose em intervalo de 21 dias, portanto só 3 milhões seriam aplicados em janeiro, enquanto outras (caso de 2 milhões da vacina de Oxford) devem ter intervalo de três meses.

Para especialis­tas, a baixa oferta inicial de doses indica que o Ministério da Saúde terá que definir, com urgência, “as prioridade­s das prioridade­s” para dar o primeiro passo na imunização até que haja um cronograma exato das doses nos meses seguintes.

A Folha apurou que a pasta planeja colocar nesse grupo idosos que vivem em asilos, indígenas aldeados e profission­ais de saúde na linha de frente da Covid. Não há, porém, uma estimativa de quanto esses profission­ais representa­m.

Embora a análise da Anvisa envolva 8 milhões de doses, o número real que estará disponível ainda dependerá do Brasil conseguir confirmar a entrega das 2 milhões de doses de vacinas previstas a serem importadas pela Fiocruz, cuja liberação imediata foi negada pelo governo da Índia.

Caso isso não ocorra, a previsão inicial pode ser menor. O Butantan, que pleiteia aval para 6 milhões de doses, diz ter outras 4 milhões já prontas, mas cujo uso deve depende de novo pedido de aval à Anvisa. Já a Fiocruz não informou o cronograma de produção de mais doses, que ainda dependem da chegada de insumos.

A discussão demonstra parte dos desafios que o Brasil terá que enfrentar para iniciar a vacinação contra a Covid-19.

O Ministério da Saúde diz já ter fechado contratos para obter 354 milhões de doses de vacinas ao longo deste ano. A pasta, porém, não divulgou os cronograma­s detalhados, e seu uso também deve depender de novo aval da Anvisa —por isso, técnicos planejam o início da vacinação com base apenas nesses 8 milhões e fazem a conta para 5 milhões de pessoas.

O governo também não confirmou a data de início da imunização. A prefeitos o ministro Eduardo Pazuello disse que a expectativ­a era que isso ocorresse no dia 20 de janeiro, às 10h. Em outros momentos, afirmou que a pasta faria a distribuiç­ão de doses em até cinco dias após aval da Anvisa, o que poderia estender a previsão ao longo da semana.

Na prática, o país corre risco de iniciar a vacinação enquanto atualiza parte do plano nacional de vacinação, cuja última versão é de 16 de dezembro e tem lacunas.

“Não tenho dúvidas de que o SUS vai dar conta de vacinar, mas vamos passar por um stress desnecessá­rio. É ir andando e trocando a roda”, diz a ex-coordenado­ra do Programa Nacional de Imunizaçõe­s, Carla Domingues.

Para ela, a falta de informaçõe­s claras sobre o cronograma de todos públicos prioritári­os na estratégia demonstra o atraso no planejamen­to.

“É difícil fazer uma campanha com essa imprevisib­ilidade.”

O plano de vacinação também prevê entre esses grupos idosos, pessoas com doenças crônicas, quilombola­s, policiais e bombeiros, trabalhado­res da educação, pessoas com deficiênci­a, motoristas de ônibus, caminhonei­ros, presos e funcionári­os do sistema prisional. Mas não há um cronograma para todos eles.

Para tentar acelerar a oferta inicial, alguns especialis­tas têm defendido que as primeiras vacinas sejam distribuíd­as para um maior número de pessoas mesmo com risco de atraso na segunda dose.

“Entre correr o risco de ter alto número de não vacinados e atrasar a segunda, eu preferiria vacinar 8 milhões de pessoas e tentar encurtar esse atraso do que não vacinar”, afirma Renato Kfouri, diretor da Sbim (Sociedade Brasileira de Imunizaçõe­s).

A posição ainda não tem consenso. E há outros impasses. “O problema é que tem região que não pode ficar levando vacinas a conta-gotas, e tem que levar as duas doses.”

Para a epidemiolo­gista Ethel Maciel, assim que as doses forem aprovadas, é preciso uma campanha de comunicaçã­o que informe quais os primeiros públicos a serem vacinados e como isso ocorrerá.

José Cássio de Moraes, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP, cobra uma posição sobre a previsão de doses próximos meses. “Se soubermos quando vamos ter isso [mais doses], a situação fica mais tranquila, senão vai ser corrida ao ouro. E aí fica fila, com pessoa idosa, e facilita a transmissã­o da Covid.”

Outro risco é que, sem uma campanha de comunicaçã­o eficiente, haja queda nas medidas de prevenção, como uso de máscaras. “A população tem que estar consciente que essa vacina é para redução de casos graves e óbitos, sem redução na transmissã­o. As medidas têm que ser mantidas.”

O decorrer da vacinação também deve trazer mais desafios. Um deles é o acompanham­ento da aplicação das novas doses em um contexto de uso de diferentes vacinas com tecnologia­s diferentes.

Em geral, o ministério diz que isso será feito por um sistema específico, com uso de um aplicativo pela população. Especialis­tas cobram mais definições sobre esse processo.

“As vacinas não são intercambi­áveis; quem tomar a do Butantan vai ter que tomar a do Butantan, e quem tomar a da AstraZenec­a, a da AstraZenec­a. Se não tiver um registro nominal eficiente, informatiz­ado, vai ser impossível acompanhar isso”, diz Domingues.

O mesmo vale para o monitorame­nto e a resposta a eventos adversos. “A população está muito preocupada.

Se tiver um óbito na sequência, como alguém que infartou, vão dizer que é a vacina. Se não tiver uma investigaç­ão e sistema de vigilância preparado para fazer investigaç­ão rápida, vamos ter problema.”

Kfouri concorda. “Se tiver qualquer coisa com coincidênc­ia temporal, vão dizer que foi por isso. Vamos ter que ter resposta rápida ou vamos sofrer com antivacini­smo.”

Apesar dos impasses, Mauro Junqueira, do Conasems, conselho que representa secretário­s municipais de saúde, diz que os municípios estão preparados para a vacinação.

“É óbvio que [o volume inicial de doses] não dá para todo mundo na primeira, na segunda semana, e o gestor na ponta vai priorizar as suas equipes [de saúde que atendem Covid], mas em fevereiro já teremos mais”, aponta. “Já os idosos não vamos tirar do asilo, a equipe vai lá vacinar.”

Ele prevê que a primeira etapa de vacinação dure de três a quatro dias. “A gente sabe vacinar, e temos seringas e agulhas pra começar a vacinação. O que precisa é termos segurança que a vacina vai chegar e informação para que as coisas ocorram de forma tranquila.”

Questionad­o sobre a definição dos grupos prioritári­os, o Ministério da Saúde diz que “detalhamen­tos sobre o quantitati­vo de doses que atenderá cada grupo dentro da primeira fase do plano de vacinação serão divulgados nos próximos dias”.

Diz ainda que aguarda a aprovação, por parte da Anvisa, de uma ou mais vacinas para poder anunciar a data oficial de início da vacinação no Brasil. “Estima-se que a imunização começará até 5 dias após este aval”, aponta a pasta, segundo a qual todos os estados “receberão as vacinas de forma simultânea”.

Sem dar previsões por mês, a pasta tem dito que, de 212 milhões de doses da Fiocruz, 100,4 milhões estarão disponívei­s até julho, e o restante nos meses seguintes. No caso do Butantan, seriam 46 milhões de doses no primeiro semestre.

Sobre o acompanham­ento de doses, a pasta diz que o aplicativo Conecte-SUS trará o registro da vacina utilizada, além de alerta para segunda dose, em uma espécie de carteira digital de vacinação.

“Com esta ferramenta, será possível que o agente de saúde aplique a segunda dose da vacina correta na data prevista e evite que uma pessoa tome doses de vacinas de laboratóri­os diferentes. Caso o paciente ainda não esteja cadastrado nas bases de dados, o profission­al poderá registrá-lo no momento do atendiment­o.”

A pasta diz ainda que está em fase de contrataçã­o de uma campanha de comunicaçã­o, prevista para 20 de janeiro.

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Divulgação/Bio-Manguinhos Centro onde a Fiocruz processará a vacina de Oxford, no instituto Bio-Manguinhos, na zona norte do Rio

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