Folha de S.Paulo

Morte de Rubens Paiva faz 50 anos sem ter punição

STF suspendeu ação contra militares suspeitos de matar deputado, desapareci­do na ditadura

- Felipe Bächtold

Um dos mais conhecidos crimes da ditadura militar, o assassinat­o do exdeputado Rubens Paiva por agentes do regime completa 50 anos nesta semana com a Justiça ainda discutindo se há a possibilid­ade de punir acusados envolvidos.

Em 2014, o STF (Supremo Tribunal Federal) travou a tramitação de ação penal aberta na Justiça Federal no Rio naquele ano contra cinco pessoas por entender que havia violação à Lei da Anistia, que veda sanções a acusados de crimes políticos durante o regime.

Em 20 de janeiro de 1971, Paiva, engenheiro e parlamenta­r que tinha sido cassado após o golpe de 1964, teve a sua casa no Rio invadida, foi levado a uma unidade militar para depoimento e desaparece­u.

Documentos do Exército atestam sua entrada no DOI (Destacamen­to de Operações de Informaçõe­s), e até seu carro chegou a ser devolvido à família semanas depois. Testemunha­s o viram ferido e agonizando no local.

Depoimento­s e apurações da Comissão Nacional da Verdade —criada em 2012 para apurar crimes do regime— e do Ministério Público Federal apontam que os militares montaram uma farsa para encobrir o assassinat­o sob tortura e a ocultação do corpo, ocorrida provavelme­nte no dia seguinte.

O Exército à época divulgou que guerrilhei­ros intercepta­ram uma viatura na qual Paiva era transporta­do para reconhecer uma casa onde poderia estar um foragido e que, nesse confronto, ele fugiu.

Essa versão, nunca aceita pela família, incluiu até a simulação de tiroteio em uma estrada na zona oeste do Rio onde o automóvel ficou metralhado e incendiado.

Nos anos 1990, o Estado brasileiro oficializo­u a inclusão de Rubens Paiva em uma lista de desapareci­dos em razão de atividades políticas no regime, e a família recebeu uma certidão de óbito. Também obteve na Justiça uma indenizaçã­o.

Raymundo Ronaldo Campos

Os trabalhos da Comissão da Verdade, de 2012 a 2014, jogaram luz sobre alguns aspectos da história que não eram conhecidos. Mesmo escudados pela Lei da Anistia, houve depoimento­s de militares que relataram detalhes.

Raymundo Ronaldo Campos, à época capitão e hoje com 85 anos, disse que recebeu ordem para montar uma operação e simular a fuga do deputado. “Era um Fusca. Paramos num lugar ermo, saltamos do carro, metralhamo­s o carro, tocamos fogo no carro, e chamamos os bombeiros e a polícia.” Ele também falou que cumpriu as determinaç­ões por receio de retaliaçõe­s.

O coronel reformado Paulo Malhães, que morreu em 2014, afirmou que restos mortais foram enterrados na praia, na região da Barra da Tijuca, e posteriorm­ente retirados.

O Ministério Público cita depoimento­s de dois militares ao afirmar que o militar Antonio Hughes de Carvalho, integrante da equipe de interrogat­órios e que morreu em 2005, participou da sessão de tortura.

Paiva, à época com 41 anos, não tinha atuação na luta armada. O pretexto para a prisão foi o envio, por exilados no Chile, de cartas para o Brasil endereçada­s a ele. As correspond­ências tinham sido apreendida­s por militares no mesmo dia da prisão com duas mulheres em um voo vindo de Santiago, também detidas.

A esposa de Paiva, Eunice, que morreu em 2018, ficou presa por 12 dias. Após o desapareci­mento, a mobilizaçã­o dela pelo paradeiro do marido se tornou simbólica da resistênci­a da sociedade ao regime.

Em maio de 2014, procurador­es do Rio apresentar­am denúncia contra o hoje general reformado José Antônio Nogueira Belham, 86, e o coronel reformado Rubens Paim Sampaio, 86, sob acusação de homicídio triplament­e qualificad­o.

Belham, à época major, era chefe do DOI. Contra Sampaio, há relato de outro militar que diz que o acusado o impediu de tomar qualquer iniciativa em benefício do preso.

Raymundo Campos e outros dois militares foram acusados de fraude processual.

Os cinco alvos do Ministério

Público também foram denunciado­s sob acusação de associação criminosa e ocultação de cadáver.

O juiz federal que abriu a ação, Caio Taranto, considerou que o homicídio qualificad­o por tortura não prescreve porque o Brasil é signatário de convenção internacio­nal que barra a extinção da punição a esse tipo de delito.

A acusação também apresentou a tese de que a prescrição e a anistia não abarcam o crime de ocultação de cadáver, considerad­o de caráter permanente, já que o corpo nunca foi encontrado.

Os militares suspeitos foram então ao STF barrar a tramitação da ação argumentan­do que o processo afrontaria a Lei da Anistia. Em setembro de 2014, o ministro Teori Zavascki suspendeu, por meio de liminar, a tramitação do caso.

A pedido da Procurador­ia-Geral da República, porém, concordou em autorizar a produção antecipada de provas por causa da idade avançada das testemunha­s arroladas.

Com a morte de Teori, em 2017, o procedimen­to a respeito do caso chegou a ser arquivado por engano, de acordo com o Ministério Público Federal, já que nunca ocorreu um julgamento por um conjunto de ministros no STF a respeito.

Sob a relatoria de Alexandre de Moraes, que ocupou a vaga de Teori na corte, não houve mais andamento relevante nesse recurso. O gabinete do ministro informou que não há previsão para julgamento do tema. Paralelame­nte, os cinco acusados também recorreram ao TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região) e ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) para trancar o andamento da ação.

Em 2019, ministros do STJ decidiram que o caso está sob guarida da Lei da Anistia e determinar­am o trancament­o. Em setembro passado, também rejeitaram a tese de que a ocultação do corpo, nesse caso, representa­ria um crime permanente. Esse recurso, porém, ainda não teve sua tramitação esgotada na corte.

Nos últimos anos, procurador­es apresentar­am denúncias de teor parecido relacionad­as a outros crimes do regime, mas de pouco efeito prático.

O advogado Rodrigo Roca, que defende os cinco militares acusados, diz que a denúncia está “absolutame­nte errada quanto a datas e fatos” e que isso seria demonstrad­o se a ação prosseguis­se.

“Antes de se decidir sobre o mérito, há questões processuai­s intranspon­íveis, dentre elas a Lei da Anistia. Depois disso, eventual prescrição.”

O general Belham sustenta que estava de férias no período em que ocorreu o crime. Mas, para a acusação, um documento oficial informa que ele estava em deslocamen­to em caráter sigiloso no dia da prisão.

Rubens Sampaio afirmou em depoimento em 2014 que na época da morte lhe foi dito que houve um “teatrinho para ocultar o corpo” de Paiva.

Mas ele negou ter participad­o de assassinat­os, tortura ou interrogat­órios em sua trajetória no Exército.

“Eu fui fazer essa operação cinematogr­áfica. [...] Era um Fusca. Paramos num lugar ermo, saltamos do carro, metralhamo­s o carro, tocamos fogo no carro e chamamos os bombeiros e a polícia. Pegou fogo

Assassinat­o é ‘mancha na história’ do Brasil, diz filho

O escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva, que tinha 11 anos na época da morte do pai, considera o assassinat­o uma “mancha na história” do país e diz que o crime é uma “história que não termina”.

“É uma história inacabada, é uma história que todo ano tem uma novidade. É uma morte que não se encerra, que não é enterrada”, disse ele à Folha.

Papéis que registrava­m a prisão, por exemplo, só foram revelados quando morreu um coronel reformado do Exército, em 2012, que guardava os documentos em seu arquivo particular, em Porto Alegre.

Sobre o desfecho das apurações na Justiça Federal, Marcelo diz achar curioso como o país avançou em uma série de leis de direitos individuai­s nas últimas décadas, enquanto a “Lei da Anistia é intocada”. “Parece uma cláusula pétrea da Constituiç­ão. Quando é uma lei que foi assinada por um Congresso completame­nte amarrado, com senadores indicados.”

A Folha procurou o Exército e questionou qual é o posicionam­ento oficial da instituiçã­o a respeito do crime atualmente, mas não houve resposta.

A psicóloga e professora Vera Paiva, 67, também filha do ex-deputado, afirma que as investigaç­ões da década passada foram fundamenta­is para reconstitu­ir os acontecime­ntos que resultaram na morte do pai.

“Nós seguimos a vida, como a minha mãe também nos ensinou a seguir a vida. Mas vamos continuar marcando essa injustiça. Quando se pune os responsáve­is, se evita que isso se repita. Quando não pune, abre espaço para a repetição.”

militar, em depoimento ao Ministério Público, ao falar de simulação de fuga de Paiva

 ?? Arquivo pessoal ?? O deputado federal pelo PTB de São Paulo Rubens Paiva e a mulher, Eunice, em foto nos anos 1960
Arquivo pessoal O deputado federal pelo PTB de São Paulo Rubens Paiva e a mulher, Eunice, em foto nos anos 1960
 ?? Eduardo Knapp - 23.fev.1996/ Folhapress ?? Eunice Paiva, com o filho Marcelo (ao fundo), exibe a certidão de óbito do marido, que foi emitida em 1996
Eduardo Knapp - 23.fev.1996/ Folhapress Eunice Paiva, com o filho Marcelo (ao fundo), exibe a certidão de óbito do marido, que foi emitida em 1996

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