Folha de S.Paulo

Você sabe que vai sofrer assédio

Um mês após episódio na Assembleia Legislativ­a de São Paulo, deputada do PSOL relembra outros casos e cobra posicionam­ento do governador João Doria (PSDB)

- Isa Penna

Um mês após sofrer assédio de Fernando Cury (Cidadania) na Alesp, a deputada do PSOL afirma que o caso não pode ser esquecido e cobra João Doria e o presidente da Casa, Cauê Macris, ambos do PSDB. “Se você é mulher e faz política, você sabe que vai sofrer assédio.”

A deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP), 29, não percorre desacompan­hada o caminho da sua sala ao plenário, depois de abordagens de colegas. Para falar de uma rotina parlamenta­r alterada pelo machismo, ela recebeu a Folha sozinha e com as portas do gabinete fechadas na última quinta-feira (14).

“Eles olham pra gente e têm algumas opções de como você chegou até aqui: de quem é filha, de quem você é esposa e, se não for nenhuma dessas opções, você dormiu com alguém”, diz. Foi a primeira vez que a deputada voltou à Assembleia depois de ter exposto o assédio do deputado estadual Fernando Cury —alvo de um processo de expulsão no Cidadania, de uma representa­ção no Ministério Público por importunaç­ão sexual e ameaçado de cassação pelo Conselho de Ética da Casa.

Um mês depois do episódio, Isa afirma que o caso não pode cair no esquecimen­to. Ela vê no comprometi­mento político da base governista, da qual Cury faz parte, o principal obstáculo para a cassação e cobra uma manifestaç­ão do governador João Doria e do presidente da Casa, Cauê Macris, ambos do PSDB.

*

Vindo pra cá me dei conta de que estava voltando pela primeira vez e comentei com meu companheir­o. Confesso que não é sem esforço, não é sem nenhum sentimento negativo que eu venho para esse lugar. Tive a dimensão do que aconteceu quando eu vi o vídeo. Foi quando eu desabei, mas vi que eu tinha provas.

Esse é um espaço que não me traz segurança. Agora muito menos. O trajeto de ir ao plenário eu sempre faço acompanhad­a, por já ter sido abordada por outros deputados de uma forma, não sexualment­e agressiva, mas situações cilada.

Sentiu olhares de desconfian­ça após expor o assédio?

Teve um momento em que os deputados estavam falando entre eles que tinha que ver se não era montagem. Mas em seguida eles viram [o vídeo] e acabou. O vídeo foi um gatilho para muita gente, eu recebi mensagens de mulheres abaladas. Eu recebi muita força, uma enxurrada de apoio. Se você é mulher e faz política, você sabe que vai sofrer assédio.

A sra. se lembra da primeira vez que sofreu assédio?

Foi num táxi, estava chovendo muito. Minha mãe, professora, tinha que sair para dar aula. Ela colocou nós três, crianças, num táxi. O taxista já era meio conhecido, ele quebrava esses galhos. Seu Antônio, ele chamava, colocou a mão na minha perna. Eu me lembro da sensação de ficar com a perna paralisada. Eu tinha uns dez anos.

E na política? Eu trabalhei

dois anos como assessora de plenário na Câmara Municipal, eu já tinha sido vereadora por 30 dias. Assessores tiraram foto da minha bunda e ficaram passando pelos grupos. Teve o caso que passei no elevador com o [vereador] Camilo Cristófaro [que a agrediu verbalment­e].

Na Assembleia, no dia da votação do dossiê mulher [projeto que ela propôs], um deputado —que não vou falar o nome porque não tenho provas, mas ele sabe— perguntou: “você não vai pedir meu voto?”. Você tem que sair com jogo de cintura, ou começam a falar que você é chata, brava, louca. Ele: “Qual seu preço?”. “Ha-ha-ha [risada em tom de brincadeir­a], tem coisas que não têm preço.” Eles olham para a gente e têm algumas opções de como você chegou até aqui: de quem é filha, de quem você é esposa e, se não for nenhuma dessas, você dormiu com alguém. Infelizmen­práticas te homens criados no poder geralmente são os piores.

O próprio Fernando Cury, eu não o conhecia, não sabia nem o nome. Pesquisei sobre a vida dele, é um agroboy, um ruralista. Só um cara que cresceu em Botucatu, só um filho de um coronel mesmo pra achar que vai fazer isso com uma deputada e que, no dia seguinte, vai conversar e ficar tudo bem. Ele também não sabia quem eu era politicame­nte. “É a deputada que rebola a bunda no Instagram”, era o que tinha chegado até ele. É a única forma que eu consigo explicar na minha cabeça o que ele fez.

A sra. recebe apoio dentro do PSOL e da esquerda?

Óbvio que, na minha frente, todo mundo é muito solidário, mas há sim uma coisa de “por que ela foi dançar?”. Mesmo dentro da esquerda e do PSOL. Quero crer que tem bem menos, mas tem sim. Quando comecei a militar no PSOL nem setorial de mulheres tinha. Dançar funk não é só dançar funk, é ir contra essa cultura do estupro. Essa noção de que temos que combater as

machistas e a lógica que permanece colocando sempre os mesmos sujeitos nas instâncias de decisão interna é muito importante.

Em que momentos enxerga machismo no partido?

Enxergo machismo no PSOL quando escuto que o feminismo é uma pauta de costumes. Como se fosse uma pauta que está numa outra camada de importânci­a. A mudança de cultura política interna dentro dos partidos é um processo. Tivemos casos de expulsão dentro do PSOL. Atuei ativamente para barrar algumas candidatur­as de homens que eu sei que são assediador­es.

A sra. comentou que Cury estava bêbado.

Era uma confratern­ização de fim de ano. Me falaram que estava rolando uísque. Mas odeio esse moralismo hipócrita. Não gosto de colocar a culpa na bebida. Se ele fez isso comigo, naquelas circunstân­cias em que ele estava alterado, sóbrio geralmente se pode fazer até pior.

Ele jogou a carreira dele fora?

Eu acho. Não fico feliz em dizer isso. Esse caso virou importante e é importante levar até o final, menos por mim, por ele, mas pela sociedade. A minha intenção é que os milhares de homens que têm essa mesma prática parem. Eu quero que eles me escutem. Eu quero falar com eles. Ele sempre vai ser o deputado assediador, isso é intranspon­ível.

Há divisão de gênero ou ideologia entre os deputados que te apoiaram ou apoiaram ele?

Ninguém teve coragem de dizer que está ao lado do Cury. Muitas deputadas de direita assinaram o pedido de convocação da sessão extraordin­ária. Muitos deputados da bancada evangélica. O Cury parece que é uma base importante em Botucatu, ainda não fui olhar a fundo, mas tem uma base econômica do Doria. Quem ficou quieto até agora foi a base do governo.

O apoio entre as outras 17 deputadas foi unânime?

Ainda não. Carla Morando [PSDB] não se pronunciou, Damaris Moura [PSDB] não se pronunciou, Valéria Bolsonaro [PSL]. As deputadas da bancada evangélica não se pronunciar­am. Mas não se posicionar­am a favor dele.

[Cassar Cury] É cassar o mandato de um pequeno feudo eleitoral do governador. Aí o jogo vai para outro patamar e o governo começa a exercer pressão sobre a sua base: “abafe esse caso”.

Por que cobra o posicionam­ento de Cauê Macris e Doria?

O presidente tem o dever de garantir uma mínima conduta ética entre os deputados. Sinto muito se o presidente, que é pai de uma menina, não consegue se sensibiliz­ar a ponto de se sentir responsáve­l pela segurança das deputadas. Se o governador acha que não [deve] se pronunciar num caso de assédio que marcou tanto as mulheres, acho desrespeit­oso. Não preciso de nada do Doria, mas ele precisa mostrar que isso importa para as mulheres.

Com 19 de 48 assinatura­s até agora para que o caso seja analisado no plenário, a sra. tem fé de ter 48 votos para a cassação dele?

Super tenho fé. Conhecendo os deputados, acho que estão se aproveitan­do do recesso para não se posicionar, mas todos vão ser obrigados a se posicionar.

Acelerar o caso não pode abrir brecha para que a Justiça invalide?

Isso é um dos meus medos. Ficar abrindo muita exceção no jogo político e ele usar isso no jogo jurídico para invalidar. Por ora estou mais focada em construir uma rede para que esse caso não caia no esquecimen­to.

A defesa do deputado diz que irá fazer perícia no vídeo e que não houve apalpação de seio.

Não vou sequer comentar. Eu falei que eu fui assediada. Não falei que meu seio foi apalpado. Aí quem vir o vídeo pode tirar suas próprias conclusões.

Na tribuna, a sra. falou que foi tocada.

Sim, e fui. A gente vai entrar nessa discussão? Acho que é o que ele está querendo. Eu fui assediada.

Como a sra. relaciona o vídeo em que dança funk e o assédio?

Você chega num lugar, e as pessoas estão comentando sobre o seu corpo, aí começa a bebedeira. As pessoas veem que uma mulher jovem que dança funk jamais pode ser também uma advogada e deputada. É justamente o que quero questionar quando danço.

Há a crítica de que a esquerda silencia quando a vítima do assédio é de direita. Concorda?

De forma nenhuma. É que a maioria das mulheres de direita não denunciam e as de esquerda denunciam.

A sra. já se manifestou publicamen­te contra machismo sofrido por mulher de direita?

Teve um caso com a deputada Janaina Paschoal (PSL), em que falaram para ela ir sentar no colo de não sei quem [Ênio Tatto, do PT, falou que Janaina havia sentado no colo do governador]. Falei diretament­e com a deputada.

A deputada Joice Hasselmann (PSL) postou uma foto de biquíni e foi criticada. O que acha disso?

A gente quer ser livre, pelo amor de Deus. Minha solidaried­ade, inclusive, com a deputada Joice. E com tantas mulheres que são figuras públicas, como a Dani Calabresa. São tantos casos. Em rede social já me ameaçaram até de estupro coletivo. Eu tenho tudo salvo.

Quando a sra. acha que não é possível deixar passar e é preciso denunciar?

Se eu for pegar cada fake e cada babaquinha que tirou o dia para ficar me mandando “piranha”, eu não faço mais nada. Eu denuncio quando tenho prova. Sempre orientei minhas clientes: começou a sentir que vai ser assediada, baixa um aplicativo de gravador.

O PSOL vai ter candidatur­a própria para a eleição da Mesa?

Vamos. Eu apoio a Erica Malunguinh­o. Mas tem coisas na vida da Erica aqui dentro que a gente nem dimensiona. Esse povo bolsonaris­ta que fica dormindo aqui na frente grita para ela: “vai cair, vai cair a deputada travesti”.

Os dois nomes colocados são o meu e o da Erica. Vou ser líder de bancada. Depende da Erica, se ela quiser, é ela.

A sra. é cogitada? Negociaçõe­s sobre cassar Cury estão na pauta da campanha para a Mesa?

Não sei quão forte ele é. Por mais que os deputados tenham acordo político com Cury, acho difícil eles construíre­m isso sem serem publicamen­te repudiados.

“Sinto muito se o presidente [da Assembleia Legislativ­a, Cauê Macris], que é pai de uma menina, não consegue se sensibiliz­ar a ponto de se sentir responsáve­l pela segurança das deputadas

 ?? Marlene Bergamo - 14.jan.2021/Folhapress ?? Acima, a deputada estadual Isa Penna em entrevista à Folha em seu gabinete; abaixo, o momento em que ela é apalpada por Fernando Cury
Isa Penna, 29 Formada em direito pela PUC-SP, militou no movimento estudantil. Exerce o primeiro mandato como deputada estadual após ser eleita em 2018 com 53.838 votos. É filiada ao PSOL desde 2010
Marlene Bergamo - 14.jan.2021/Folhapress Acima, a deputada estadual Isa Penna em entrevista à Folha em seu gabinete; abaixo, o momento em que ela é apalpada por Fernando Cury Isa Penna, 29 Formada em direito pela PUC-SP, militou no movimento estudantil. Exerce o primeiro mandato como deputada estadual após ser eleita em 2018 com 53.838 votos. É filiada ao PSOL desde 2010
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