Folha de S.Paulo

Trump sai e deixa rastro de confusão e pendências

Presidente enfrenta impeachmen­t que pode cassar seus direitos políticos

- Rafael Balago

A Presidênci­a mais conturbada dos EUA em décadas chega ao fim na quarta (20). Mas Donald Trump seguirá tentando chamar a atenção para se manter em destaque na política, na direção contrária de outros ex-presidente­s.

A Presidênci­a mais conturbada dos EUA em décadas chega ao fim ao meiodia (14h de Brasília) da próxima quarta-feira (20). Mas Donald Trump seguirá tentando chamar a atenção para se manter em destaque na política americana, na direção contrária do que fizeram outros ex-presidente­s do país.

Trump foi um dos líderes mais agressivos —e talvez o mais antidemocr­ático— a ocupar a Casa Branca. Ele, que sempre buscou o confronto em vez da conciliaçã­o, estava perto de entregar um país já dividido e duramente atingido pela pandemia. Mas seu legado ganhou uma mancha ainda maior em seus últimos dias no cargo, ao estimular uma insurreiçã­o contra o Congresso.

Como resultado, Trump foi banido de redes sociais e teve o segundo processo de impeachmen­t aprovado na Câmara dos Deputados —agora, com o apoio de dez republican­os, um sinal de que o partido está rachado. Por outro lado, 197 correligio­nários votaram contra a ação, e muitos deles fizeram discursos fervorosos em defesa do presidente.

A decisão sobre afastá-lo e, mais importante, fazer com que perca direitos políticos, tirando a possibilid­ade de que concorra outra vez à Presidênci­a, caberá, mais do que ao Senado, ao Partido Republican­o. São necessário­s 67 votos para condenar Trump, e os democratas terão apenas 50 quando o processo for julgado na Casa.

“A principal questão é saber como o Partido Republican­o resolverá suas disputas internas. Se o establishm­ent vai se impor, ou se a legenda continuará dependente do trumpismo”, avalia Sérgio Amaral, ex-embaixador do Brasil em Washington (e pesquisado­r do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacio­nais).

Trump conseguiu manter sua aprovação relativame­nte estável ao longo do governo, oscilando em torno de 40%, com uma mistura de estratégia­s novas e antigas. De um lado, buscou cumprir promessas de campanha, como restringir a imigração, criar empregos e defender pautas conservado­ras —o maior acesso ao porte de armas e a proibição ao aborto, por exemplo.

De outro, manteve um clima de tensão constante, com rivais sendo colocados como inimigos mortais, além de negar os riscos do aqueciment­o global e da pandemia de coronavíru­s, muitas vezes com base em mentiras e em teorias estapafúrd­ias.

Após a invasão do Capitólio, o presidente viu essa taxa de aprovação desmoronar. De acordo com pesquisa conduzida pela agência de notícias Reuters com a Ipsos, a cifra foi a 34% —o menor valor desde o fim de 2017. O monitorame­nto do site especializ­ado FiveThirty­Eight indica que essa foi não apenas a maior queda no índice desde o começo do mandato, mas uma amostra de que a erosão passou a acontecer entre eleitores republican­os.

Assim, o soneto final na Casa Branca contraria a tática de Trump de se apresentar como infalível a seus seguidores. Ato contínuo, a estratégia consistia em mostrar que quem o seguisse também poderia aproveitar desse sucesso, apontou a escritora Anne Applebaum na revista The Atlantic. “Os trumpistas não querem democracia, prosperida­de, liberdade ou igualdade, mas a fantasia de vitória sem fim.”

Os resultados são dúbios: levou os republican­os a perderem o controle da Câmara e do Senado e foi derrotado na eleição, ainda que tenha sido capaz de catalisar 74 milhões de votos, a segunda maior marca em um pleito presidenci­al na história dos Estados Unidos, mostrando força para manter uma base engajada.

“Ele estabelece­u um canal de comunicaçã­o com uma massa de eleitores que não costumava ser diretament­e acionada pelo Partido Republican­o. Aquela população que, de alguma forma, reconheceu-se como a que mais sofreu os custos da globalizaç­ão, sem contrapart­ida alguma, tem esperanças de que Trump ainda possa ser a solução”, afirma Neusa Bojikian, pesquisado­ra do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA.

Assim, muitos republican­os temem perder votos ao confrontar Trump. Por outro lado, defender suas ações é cada vez mais difícil, à medida que elas colocam a própria democracia americana em risco.

“Nos Estados Unidos, quando um presidente perde a reeleição, a dinâmica dos partidos faz com que novas lideranças surjam rapidament­e. O líder derrotado nas urnas fica com um selo de perdedor”, diz Leandro Consentino, professor de ciência política do Insper. “Mas Trump tenta mudar isso ao criar a narrativa de que é bom e que só perdeu porque houve fraude.”

Personalis­ta, o presidente não estimulou o surgimento de sucessores e até brigou com nomes que o ajudaram na vitória de 2016, como o estrategis­ta Steve Bannon. Mesmo assim, pipocam alguns candidatos a tentar representa­r seu legado: o senador Ted Cruz, do Texas, e o secretário de Estado Mike Pompeo, além de familiares, como o genro Jared Kushner, que se envolveu em negociaçõe­s de política externa, e os filhos Ivanka e Donald Jr.

Para se manter em evidência depois de deixar o cargo, Trump terá de superar mais obstáculos. Primeiro, precisa achar uma nova forma de falar diretament­e a milhões de pessoas. Ele foi banido do Twitter, seu principal meio de comunicaçã­o, e, por ora, depende da imprensa para levar suas mensagens a grandes audiências. Por ironia, durante todo o governo tratou jornalista­s como inimigos, com diversas ofensas públicas.

Convencer milhões de pessoas a segui-lo em plataforma­s que não costumam acessar no dia a dia será tarefa complexa. E redes sociais que não moderem discursos de ódio podem ficar sem acesso a servidores, como ocorreu com o Parler.

Trump também é visto como um ícone do populismo de direita que ganhou força nos últimos anos em lugares como Brasil, Itália e Hungria. Especialis­tas, no entanto, apontam que o republican­o tem poucos caminhos para se beneficiar disso, já que “vários líderes se distanciar­am dele depois da invasão ao Congresso”, avalia o embaixador Sérgio Amaral. “O ataque foi muito mal recebido, especialme­nte em países europeus.”

“Os chefes de Estado de direita em outros países precisarão estar dispostos a sacrificar uma boa relação com Biden para seguirem próximos de Trump”, analisa Roberto Moll, professor de história da América na Universida­de Federal Fluminense.

Trump já disse que não irá à posse de Biden, na quarta-feira. Segundo o jornal The New York Times, ele deverá partir da Casa Branca ao som de uma banda militar, com um tapete vermelho estendido. Há a possibilid­ade de que faça um discurso de despedida em um comício na Flórida. Se o evento ocorrer, será o primeiro teste de popularida­de fora do cargo.

Há também alertas de que apoiadores de Trump planejam atos violentos no dia da posse, que terá forte presença de militares, para tentar evitar que cenas como a do começo do mês se repitam.

“Esta cena política tumultuada deve permanecer por algum tempo, porque reflete conflitos que estavam dormentes. O estilo abrasivo de Trump, de radicaliza­r tudo, reacendeu problemas antigos, como a questão racial e a desigualda­de”, avalia Amaral. “E o governo Biden terá de lidar com essas questões.”

Foi a maior plateia de todos os tempos a ver uma posse, ponto

Donald Trump ao exagerar o público de sua posse, em 26.jan.17

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Havia pessoas muito boas dos dois lados sobre confrontos entre neonazista­s e antirracis­tas em Charlottes­ville, em 15.ago.17

Você trará um futuro tremendo para seu país. É um grande líder ao ditador norte-coreano Kim Jong-un, em 27.fev.19

O Brasil e os Estados Unidos estão o mais próximo que já estiveram durante encontro com Jair Bolsonaro, em 28.jun.19

O futuro não pertence aos globalista­s, mas aos patriotas discurso na ONU, em 24.set.19

Fala-se muito sobre o filho de Biden. Biden se gabou de ter parado a acusação, então se você puder investigar... em ligação com o presidente ucraniano Volodimir Zelenski, em 25.jul.19, que gerou seu 1º pedido de impeachmen­t

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Pare a contagem! durante a apuração da eleição, que perdeu, em 5.nov.20

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Brendan Smialowski - 12.jan.21/AFP O presidente Donald Trump caminha até o helicópter­o Marine One, do lado de fora da Casa Branca, para embarcar em viagem rumo ao Texas

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