Folha de S.Paulo

Privatizan­do a censura

- Hélio Schwartsma­n helio@uol.com.br

Uma das caracterís­ticas da onda de extrema direita que varre o mundo é a instrument­alização da liberdade de expressão para propagar notícias falsas e discursos virulentos. A reação de muitos dos democratas tem sido a de defender uma relativiza­ção das proteções à liberdade de expressão. Será que é esse mesmo o caminho?

Vale lembrar que, durante ao menos dois séculos, versões razoavelme­nte fortes da liberdade de expressão desempenha­ram papel central na consolidaç­ão de algumas de nossas melhores instituiçõ­es, como a democracia e a ciência. Não penso que devamos correr o risco de retrocesso nessas áreas só porque experiment­amos um quinquênio de dissabores.

O que fazer, então, com as sandices que líderes populistas como Donald Trump e Jair Bolsonaro publicam em suas redes sociais? A pior solução seria atribuir a algum órgão de governo o poder de decidir o que vai ou não ser publicado. Felizmente, não há muitos defendendo esse caminho.

Uma saída mais popular tem sido pressionar as big techs para que exerçam seu poder de edição e banam ou ao menos reduzam a visibilida­de dos discursos mais radicais/ violentos. Isso é decerto preferível à censura estatal pura e simples, mas fica ainda longe de uma boa solução.

A reclamação de trumpistas e bolsonaris­tas de que a exclusão das redes também configura censura procede só em parte. Se o cidadão deve ter a liberdade de dizer o que quer, empresas devem ter a de escolher o que vão ou não publicar. Melhor ainda se elas forem muitas, ideologica­mente diversas e se pautarem por regras racionais, claras e previament­e anunciadas.

A principal dificuldad­e desse arranjo é que ele concentra poder demais nas mãos dos hoje poucos atores empresaria­is. Mas não deixa de ser um avanço trocar o quase impossível paradoxo da tolerância (precisamos tolerar os intolerant­es?) pelo problema mais tratável de como lidar com monopólios.

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