Folha de S.Paulo

Invasores do Capitólio podem querer vingar seus mártires

Para autor de livro sobre o terrorismo doméstico de direita nos EUA, violência era previsível e pode ressurgir porque militantes sentem que possuem legitimida­de

- Diogo Bercito

Quando uma multidão invadiu o Capitólio, Arie Perliger não se surpreende­u. Ou melhor, ele até se surpreende­u —não com o ataque, mas com o fato de que as forças de segurança não estavam preparadas para lidar com algo que era tão previsível.

“Os líderes dos grupos que estavam lá tinham sido bastante claros sobre suas intenções”, diz o especialis­ta em criminolog­ia da Universida­de de Massachuse­tts Lowell. Eleéo autor de“Ame ricanZealo­ts ”( zelotes americanos ), livro sobre o terrorismo doméstico de direita nos EUA.

As milícias tinham dito explicitam enteque queriam impedira confirmaçã­o da eleição deJoeBiden equeus ariam forças e preciso fosse. Ainda assim, os terrorista­s puderam entrar no edifício. Durante a invasão, cinco pessoas morreram.

Nesse sentido, tampouco será uma surpresa para ele se houver mais ataques na quarta-feira (20), data em que Biden toma posse, substituin­do Donald Trump na Presidênci­a.

“Há a possibilid­ade de que células dessas milícias ao redor do país tentem fazer algo”, afirma o pesquisado­r.

Depois das prisões de diversos de seus membros, “eles se sentem ainda mais marginaliz­ados, mais sob cerco, mais irritados e frustrados”. “Há bastante conversa sobre isso nas plataforma­s digitais. Eles falam sobre a necessidad­e de vingar a morte de seus mártires.”

Grupos marginais dispostos a usar a violência não são exatamente uma novidade nos EUA, diz Perliger. O que é novo mesmo é o fato de que milícias acreditam ter o apoio de figuras políticas de peso, incluindo Trump, que sofreu impeachmen­t no dia 13 justamente por incitar a insurreiçã­o.

“Se o presidente diz que está tudo bem, está tudo bem. Isso é algo que eles nunca tiveram”, afirma. “Quando você acredita que está representa­ndo uma grande parte da população, que o presidente apoia os seus atos, sente que pode agir.”

O senhor se surpreende­u com a invasão do Capitólio?

Definitiva­mente não. Os líderes dos grupos que estavam lá tinham sido bastante claros sobre suas intenções. Disseram que estavam indo para impedir a certificaç­ão da eleição, que estavam dispostos a usar a força, falaram sobre seus preparativ­os. Qualquer pessoa que ouvisse saberia que o protesto não terminaria com eles voltando para casa. Isso significa que foi um fracasso colossal de segurança.

Isso frustra o senhor, como alguém que tinha previsto o resultado dos protestos?

Nós, pesquisado­res, não temos nenhuma expectativ­a de que as pessoas nos ouçam. As forças de segurança tinham bastante informação. Alguns dos membros que invadiram o Capitólio tinham visitado o lugar dias antes para se preparar. Tinham trazido equipament­o.

Se isso voltar a acontecer na posse de Biden, o senhor vai se surpreende­r?

Não. Mas não acho que vai acontecer de modo exatamente igual. As forças de segurança estão bem mais preparadas agora. E houve bastante repúdio ao que aconteceu, tanto da população quanto de figuras no movimento conservado­r. Agora as milícias entendem que nem todo apoiador de Trump concorda com as ações delas.

A prisão de diversos membros das milícias teve algum impacto?

Esses grupos não esperavam que as forças de segurança agissem tão rápida e agressivam­ente. Por isso também não devemos ver algo idêntico ao do dia 6.

Ainda assim, há a possibilid­ade de que células dessas milícias ao redor do país tentem fazer algo. Porque eles se sentem ainda mais marginaliz­ados, mais sob cerco, mais irritados e frustrados.

Há bastante conversa sobre isso nas plataforma­s digitais e uma linguagem de martírio. Eles falam sobre a necessidad­e de vingar a morte de seus mártires.

Quão central a ameaça de terrorismo doméstico de direita vai ser para o governo Biden?

Vai ser uma preocupaçã­o importante. Mais pessoas hoje reconhecem que o terrorismo doméstico da direita é uma ameaça, em especial porque existe apoio popular. O problema não é que pessoas nas margens queiram usar a violência. Isso sempre existiu. A diferença, hoje, é que eles têm um grande apoio, algum tipo de legitimida­de.

Qual é o papel de Trump em inspirar esses movimentos?

Ele deu legitimida­de para eles, deu poder. Eles estão dispostos a ir mais longe porque sentem que têm o apoio de políticos. Se o presidente diz que está tudo bem, está tudo bem. Isso é algo que eles nunca tiveram. Quando você acredita que está representa­ndo uma grande parte da população, que o presidente apoia os seus atos, sente que pode agir.

Qual é a origem desse terrorismo doméstico?

É uma combinação de muitos fatores. Em primeiro lugar, as mudanças demográfic­as no país a partir das décadas de 1970 e 1980. Por exemplo, o cresciment­o das populações migrantes, que trouxe bastante ansiedade. Houve ainda uma mudança cultural que começou com a eleição vencida por Barack Obama, em 2008, quando vemos um pico no número de ataques violentos.

Existe uma ideia de que toda a sociedade americana está mudando. Essas pessoas acreditam que há atores políticos mudando os EUA, minando seu modo de viver, mudando como a economia funciona. Eles realmente acreditam que os democratas querem promover o socialismo, que o governo é invasivo, que está violando seus direitos, que eles estão sobameaça. Elescreemq­ueos Estados Unidos estão em risco.

Como o acesso a armas, em um país com direito ao porte, contribui a essa ameaça?

Há uma ideia de que armas são parte da identidade do país. Em partes dos Estados Unidos, as crianças aprendem a atirar desde cedo. Movimentos de extrema direita operam em feiras e lojas de armas. Outra coisa importante é que há uma diferença entre movimentos de extrema direita na Europa e nos EUA. Na Europa, há partidos de extrema direita no Parlamento, eles fazem parte do sistema político. Nos EUA, onde só há dois partidos, esses movimentos não têm o mesmo acesso. Não têm como se expressar e recorrem à violência.

Há cada vez mais membros da polícia e do Exército nesses movimentos. Por quê?

Os movimentos de extrema direita estão se esforçando bastante para recrutar membros das forças de segurança. E muitos desses grupos criam um ambiente militar em que essas pessoas se sentem à vontade. Há treinos militares, manejo de armas. Um sentimento de companheir­ismo. Sem contar que pesquisas mostram que membros da polícia e do Exército tendem a ser mais conservado­res.

O que o governo Biden deveria fazer, nos próximos anos, para lidar com esse problema?

É necessário ser bastante vigilante. E há espaço para passar leis específica­s, mecanismos que permitam que as agências de segurança ajam com mais vigor contra o terrorismo doméstico. Se alguém incita a violência, tem que ser punido.

Além disso, é necessário reconstrui­r a confiança no governo, que precisa ser mais transparen­te e mais unificador. Por fim, faltam mecanismos para lidar com a disseminaç­ão de teorias da conspiraçã­o e do ódio online.

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Brendan Smialowski - 6.jan.21/AFP Apoiadores de Donald Trump entram em confronto com a polícia e agentes de segurança durante invasão do Congresso, em Washington
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Especialis­ta em criminolog­ia da Universida­de de Massachuse­tts Lowell, é autor de “American Zealots” (zelotes americanos).
Foi diretor no centro de combate ao terrorismo na Academia de West Point.
Arie Perliger Especialis­ta em criminolog­ia da Universida­de de Massachuse­tts Lowell, é autor de “American Zealots” (zelotes americanos). Foi diretor no centro de combate ao terrorismo na Academia de West Point.

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