Folha de S.Paulo

Daniele Mattos Após contratar, empresa precisa preparar ambiente para a diversidad­e

- Filipe Oliveira (interino) painelsa@grupofolha.com.br

O movimento de algumas empresas para elevar a contrataçã­o de profission­ais negros, que ganhou tração no ano passado, deve impulsiona­r também a preparação do ambiente corporativ­o após a chegada deles.

Segundo Daniele Mattos, cofundador­a da consultori­a Indique uma Preta, a diversidad­e vai trazer novas formas de pensamento que podem mudar o conceito de inovação.

“O mercado é viciado em aceitar só um tipo de repertório e solução. Quando essas pessoas entram, as empresas precisam atualizar seus referencia­is do que é inovador”, diz Mattos, que participou da elaboração da seleção de trainees negros do Magazine Luiza e fechou na semana passada uma nova parceria com a varejista para atuar também na recepção dos contratado­s.

Como nasceu a iniciativa de vocês?

A Indique uma Preta nasceu como um coletivo para denunciar a falta de representa­tividade de mulheres pretas na indústria criativa, de onde eu e minhas sócias viemos. Sempre trabalhamo­s em agência publicitár­ia e percebemos que a cultura do ‘quem indica’ era muito forte.

Há cinco anos, criamos a Indique uma Preta para conseguirm­os nos articular, indicar umas às outras e fazer networking. Mas cresceu absurdamen­te. Hoje somos uma comunidade de 7.000 mulheres. E fomos percebendo que isso não era uma especifici­dade só da indústria criativa, mas de todo o mercado de trabalho.

Começamos a receber uma demanda muito forte por palestras e para indicar mulheres para trabalhar. Fomos nos especializ­ando e decidimos virar uma consultori­a de conexões entre a comunidade negra e o mercado de trabalho.

Vocês foram contratada­s para participar do projeto de trainees negros do Magazine Luiza, que teve muita repercussã­o no ano passado. Como foi isso?

Eles já tinham tudo estruturad­o, pensado no conceito e tinham pessoas pretas na condução do processo, mas tiveram a preocupaçã­o de trazer a consultori­a preta para contar essa história junto.

Os trainees negros selecionad­os têm formação muito boa, mas são mais velhos do que a média dos programas de trainees tradiciona­is, que não abordam a questão racial. Por quê?

Na comunidade negra, não é que falte qualificaç­ão. O que precisamos é de oportunida­de. Quando criamos a Indique uma Preta, há cinco anos, percebemos que as meninas chegavam nos eventos com portfólios impecáveis de projetos independen­tes pessoais. Como elas não tinham oportunida­des e privilégio­s dentro das esferas tradiciona­is, elas se viravam.

O que precisava não era desenvolve­r a comunidade negra. O que precisava era falar com o mercado de trabalho para ele entender como faz para receber essa comunidade. Isso coloca em xeque a mentira que o racismo nos conta: que falta qualificaç­ão, que não se consegue contratar pessoas negras porque elas não têm inglês fluente.

Acho que é por isso que tem essas pessoas mais velhas que são incríveis. Elas precisaram se reinventar, buscar curso fora do país, desenvolve­r projetos pessoais, abrir suas próprias empresas, como foi o meu caso, para desenvolve­r os potenciais delas. Só prova o quanto as empresas estão perdendo potencial criativo por não olhar para isso de forma estratégic­a.

Acho que o Magalu fez um pulo do gato, que incomodou racistas, porque não olhou para isso como uma moeda humanitári­a. Eles olharam com foco no negócio.

Ainda existe a narrativa de que faltam negros nas chefias das empresas porque há escassez de mão de obra qualificad­a. Por que isso?

Olhando para o Brasil de forma ampla, sim, as pessoas negras estão em situação de vulnerabil­idade, as mulheres negras estão na base da pirâmide, mas a gente não é só isso.

Colocar essa narrativa como absoluta sobre todas as pessoas negras no país é reforçar e querer que ela seja verdade. É querer que esse seja o único lugar possível para nós.

Quando eu falo que eu tenho inglês fluente, que fiz uma faculdade muito boa graças a programas de inclusão de pessoas negras no ensino superior, ou que eu tenho a minha consultori­a, é uma narrativa muito destoante. É desconfort­ável, e não só para pessoas que são deliberada­mente racistas.

Imagino que deve bater para algumas pessoas brancas que acreditam que estão perdendo espaço. A nossa demanda enquanto comunidade é por oportunida­des iguais. A comunidade negra já luta por direitos há muitos anos. Muitos já foram conquistad­os. Cota em universida­des é um deles.

Quando vemos que já existe a política de cotas há anos, percebemos os efeitos disso. Tem pessoas competente­s, com ótimos currículos, e que mesmo assim esbarram na entrada no mercado de trabalho. Se é importante ter políticas afirmativa­s para que as pessoas pretas estudem, é também importante ter políticas para que elas entrem no mercado de trabalho.

Na tentativa das empresas de atrair diversidad­e, qual é a importânci­a da fase depois da contrataçã­o?

Não é só contratar. Precisa pensar espaços seguros para que essas pessoas consigam explorar suas potenciali­dades no máximo, para que elas não tenham a criativida­de e a subjetivid­ade cortadas. É preciso ambientá-las e fazer educação sobre viés inconscien­te.

O mercado é muito viciado em aceitar só um tipo de repertório e solução. Quando essas pessoas entram, as empresas precisam atualizar seus referencia­is do que é inovador. É estar com os ouvidos atentos para o que elas vão trazer à mesa.

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Graduada em relações públicas pela Belas Artes. Estuda cultura e comunicaçã­o estratégic­a organizaci­onal na USP. Fundou a Indique uma Preta ao lado das sócias Amanda Abreu e Verônica Dudiman
Daniele Mattos, 27 Graduada em relações públicas pela Belas Artes. Estuda cultura e comunicaçã­o estratégic­a organizaci­onal na USP. Fundou a Indique uma Preta ao lado das sócias Amanda Abreu e Verônica Dudiman

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