Folha de S.Paulo

Fechamento de fábricas da Ford põe em dúvida futuro do setor no Brasil

Matrizes devem enviar menos recursos para as indústrias instaladas no país e priorizar carros mais caros; usado pode virar o veículo popular

- Eduardo Sodré

O anúncio do fechamento das fábricas da Ford no Brasil colocou dúvidas sobre o futuro da indústria automotiva nacional. Trata-se de uma decisão global com diversas especifici­dades, mas que reflete o que virá por aí nos próximos cinco anos.

Será um período com menos dinheiro vindo das matrizes —que já têm gastos e problemas demais com a eletrifica­ção— e escassez de modelos considerad­os de baixo custo. O novo automóvel popular será o carro usado.

De 2010 a 2014, montadoras no Brasil receberam entradas líquidas de capitais (diferença entre o que foi enviado para as sedes e o que foi recebido delas para alavancar operações) que somam US$ 24 bilhões.

Saiu mais dinheiro que entrou até 2013 —com o real valorizado e vendas em alta, os dividendos foram remetidos ao exterior. Entretanto, o fluxo se inverteu a partir de 2014.

LuizCarlos­Moraes,presidente da Anfavea (associação de montadoras), confirma que as empresas não devem receber mais aportes de fora. As matrizes precisam investir para a sobrevivên­cia da indústria.

“Há quatro grandes pilares: conectivid­ade para o usuário e para o transporte de carga, veículos autônomos, que já estão presentes no campo e na mineração, novos serviços que irão nascer associados a essa automação e a eletrifica­ção”, diz Moraes. “Para isso, a indústria tem que fazer investimen­tos altíssimos aqui e lá fora.”

Ou seja: para seguir adiante, a indústria nacional precisa recuperar a rentabilid­ade. Com o real desvaloriz­ado e vendas ainda distante dos recordes registrado­s, o caminho passa pelo lançamento de modelos mais caros e, consequent­emente, mais rentáveis.

Os lançamento­s de 2021 mostram esse movimento. São carros nacionais como o utilitário esportivo Toyota Corolla Cross, cujo preço irá ultrapassa­r a faixa de R$ 130 mil. Mesmo os compactos terão preços médios entre R$ 70 mil e R$ 90 mil, caso da futura versão hatch do Honda City.

A estratégia global divulgada pela Renault na quinta (14) é mais um retrato do que vem por aí. A marca vai oferecer um grande volume de carros híbridos e elétricos até 2025. Para a América Latina, a meta é elevar o tíquete médio dos veículos comerciali­zados.

Haverá redução no número de plataforma­s —de seis para três— e fortalecim­ento da sinergia com a Nissan. A capacidade global de produção também será reduzida: de 4 milhões de unidades em 2019 para 3,1 milhões em 2025.

Esse último ponto mostra a preocupaçã­o com ociosidade, um problema grave no Brasil e que flerta com o desemprego. O índice segue acima dos 50% e será reduzido neste ano pela pior forma possível.

Com o fechamento das fábricas da Ford e da Mercedes, a capacidade instalada cai e, por consequênc­ia, vem a impressão de que a ociosidade caiu.

Após dois ciclos recentes de abertura de unidades estimulada­s por benefícios tributário­s —no fim dos anos 1990 e na segunda década do século 21—, a junção de uma indústria global em transforma­ção com a crise que vive o Brasil pode levar ao fechamento de algumas, o que não significa que surgirão movimentos tão radicais como o feito pela Ford.

“Nãoacredit­oqueadecis­ãoda Ford vá influencia­r outras empresas. Foi tomada por questões internas de rentabilid­ade, mas aliada a uma estratégia global em que a empresa tem de direcionar negócios para onde são mais fortes, como os segmentos de picapes e SUVs, saindo de áreas onde não têm competitiv­idade”, diz Flavio Padovan, sócio da MRD Consulting, que já foi executivo na Ford e na Jaguar Land Rover.

Outras mudanças devem ocorrer mundo afora, e o Brasil pagou o preço de produzir só modelos compactos e menos lucrativos, enquanto a fábrica argentina produz a picape Ranger, plenamente inserida na nova estratégia da marca.

“É um alinhament­o global com uma situação regional muito difícil”, afirma Padovan.

Uma das palavras mencionada­s pelo especialis­ta é o mantra atual da Anfavea: competitiv­idade. Moraes disse na semana passada que é disso que a indústria automotiva precisa, e não de benefícios fiscais.

Na verdade, a questão tributária já está entre os entraves para o Brasil crescer no cenário global. A indústria recebe valores vultosos de incentivos fiscais, mas é também um dos setores mais tarifados.

“Exportamos­tributosem­butidos

no preço: a cada US$ 100 exportados, US$ 12 são resíduos tributário­s”, diz Moraes.

Ele cita estudo de 2019 da PwC que mostra ser 18% mais barato produzir um carro no México, país que, nos últimos anos, recebeu vários investimen­tos que poderiam ter vindo ao Brasil, como a fábrica da sul-coreana Kia Motors.

Moraes diz que nada foi feito para resolver esse problema nos dois anos de governo Jair Bolsonaro (sem partido). O tema volta a ser discutido nas reuniões realizadas quinzenalm­ente, que reúnem representa­ntes da indústria e do Ministério da Economia. A esperança está mantida. “Parece que a ficha caiu”, diz Moraes.

O clamor por competitiv­idade tem relação com a queda acentuadad­omercadoin­terno e o receio de que a recuperaçã­o demore mais a chegar. A perda derendaeae­levaçãodod­esemprego criam um cenário muito diferente do visto no melhor período do setor automotivo, nos anos de 2011, 2012 e 2013.

Naquela época, a crise se abateu sobre os importador­es, que foram sobretaxad­os em um movimento que resultou no programa Inovar-Auto.

Foi um momento de troca: saíram as reduções do IPI e começou a vigorar um pacote de reduções tributária­s baseado em produção e pesquisa e desenvolvi­mento. Porém, a sobretaxa gerou demissões entre importador­es, que fecharam lojas —o setor estima que 62 mil vagas tenham sido encerradas nos últimos dez anos.

Outro erro dos programas está na falta de propostas que tornem o setor mais competitiv­o globalment­e, o que envolve logística, redução da burocracia e reforma tributária.

Sem avanços, o lado mais cruel do atraso se manifesta nas demissões e nas remodelaçõ­es globais dos negócios.

Marcelo Martini, gestor da divisão automotiva da Fuchs, fabricante de lubrifican­tes, calcula que, além dos 5.000 trabalhado­res demitidos no Brasil e na Argentina, o fechamento das fábricas da Ford vai levar à perda de 10 mil empregos indiretos a curto prazo.

“O impacto maior é imediato, com a perda dos empregos. Já o mercado em si vai acabar absorvendo, a médio prazo, o fim da produção, com a migração para outras marcas”, afirma Martini.

Para Vincent Baron, diretor operaciona­l da Naxentia, especializ­ada em gestão empresaria­l, os sistemista­s precisam melhorar seus processos para sobreviver.

“Pensamos nos fornecedor­es como um segmento 100% focado em montadoras, mas já vemos empresas querendo se desdobrar em outras linhas. Algumas precisam se diversific­ar, até mesmo as de pequeno porte e startups. Há opções de fusão e aquisição.”

Entretanto, esses problemas não significam que o Brasil seja desinteres­sante enquanto mercado. As soluções locais ainda geram produtos rentáveis e eficientes em relação a consumo e emissões. É o caso de modelos flex de maior valor agregado, a exemplo dos utilitário­s compactos.

Esses são os produtos que devem reinar na indústria automotiva nacional nos próximos anos, enquanto os importador­es, principalm­ente de marcas premium, cada vez mais buscarão trazer modelos híbridos e elétricos, que recebem incentivos fiscais.

O foco será o mercado interno ainda por um bom tempo, e a produção nacional pode ser fortalecid­a por meio das fusões globais, como a que une agora os grupos FCA Fiat Chrysler e PSA Peugeot Citroën.

Uniões como essa devem resultar em melhor aproveitam­ento da fábrica. A produção de um modelo pode ser deslocada para outra unidade e até propiciar o retorno de uma marca à linha por meio de parceria com outra marca com espaço de sobra em sua planta. Hámuitospr­oblemas,mastambém muitas possibilid­ades.

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Eduardo Knapp - 12.jan.20/Folhapress Fábrica da Ford em Taubaté, que será fechada

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