Folha de S.Paulo

Transporte público entra em crise estrutural

Cerca de 15% das empresas que operavam nas capitais suspendera­m seus contratos; setor defende novo marco legal

- Isabela Bolzani, Diego Garcia, Katna Baran e Paula Sperb

são paulo, rio de janeiro, curitiba e porto alegre O transporte público no país pode passar por uma mudança estrutural ao longo de 2021. Além de sofrer com uma redução circunstan­cial no número de passageiro­s, imposta pelo distanciam­ento social, as empresas dizem que há um esgotament­o no modelo de negócio baseado exclusivam­ente na receita com a passagem paga pelo usuário.

O executivo Luís Valença, presidente da CCR Mobilidade, empresa do grupo CCR, que tem várias concessões na área de transporte, diz que o momento é de reflexão.

“O sistema do transporte coletivo e urbano é dimensiona­do para atender horários de pico, mesmo que uma grande infraestru­tura fique inutilizad­a durante o resto do dia. Isso tem um custo, e a pandemiaaf­etouessaló­gica”,afirma.

Em grandes cidades, a concentraç­ão de pessoas no horário de pico ainda é grande, o que leva a aglomeraçõ­es e risco de contágio. No entanto, o fluxo de passageiro­s despencou a um nível inesperado.

No começo da pandemia, a NTU (Associação Nacional das Empresas de Transporte­s Urbanos) projetou que 2020 terminaria com 80% do número de passageiro­s regulares e com toda a frota já circulando. Mas não foi o que ocorreu. O ano terminou com 61% do número usual de passageiro­s e 80% da frota em operação.

Com isso, o resultado financeiro também frustrou expectativ­as. O setor de transporte coletivo no país registrou um prejuízo de R$ 9,5 bilhões em 2020. O resultado ficou 8% abaixo das estimativa­s. Inicialmen­te, o setor esperava uma perda de R$ 8,8 bilhões.

Segundo o presidente da associação, Otávio Cunha, havia uma queda constante no volume de usuários desde 1994. A pandemia, no entanto, acelerou e aprofundou a retração e ligou um sinal vermelho.

“O setor já não vinha conseguind­o equilibrar as contas apenas com a receita das tarifas pagas pelos usuários”, diz ele. “Com a pandemia e o distanciam­ento social, a demanda chegou a cair 80% em 2020, deixando claro que esse modelo não é mais sustentáve­l.”

Segundo o assessor especial do SPUrbanuss (Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiro­s de São Paulo), Francisco Cristovam, ao menos 15% do total de 390 companhias que operam nas capitais e no Distrito Federal deixaram de operar em 2020 —alguns apenas suspendera­m o serviço, mas mas muitas devolveram a concessão para o setor público.

“É uma conta que não fecha se não há passageiro­s em número suficiente para manter a frota operando, e o desequilíb­rio entre oferta e demanda é grande agora”, afirma.

Quando a pandemia arrefeceu, no segundo semestre de 2020, houve quem acreditass­e numa virada. Mas não foi o que ocorreu. Armando Guerra Júnior, presidente da Fetranspor (Federação das Empresas de Transporte­s de Passageiro­s do Estado do Rio de Janeiro), disse que o setor vinha com recuperaçã­o rápida até novembro, mas estabilizo­u. “Em janeiro, estamos largados à própria sorte”, afirma.

No estado do Rio, alguns segmentos de transporte público chegaram a operar com apenas 11% do contingent­e habitual. Só o setor de ônibus estima perdas de receitas de R$ 2,6 bilhões, com prejuízo de R$ 1,2 bilhão. Apenas na cidade do Rio, a perda de receita foi superior a R$ 1 bilhão, com prejuízo próximo a R$ 500 milhões.

Os ônibus estão trabalhand­o com 62% do contingent­e normal, e esse volume já configura uma recuperaçã­o. Chegaram, no momento crítico, a rodar com 39% de ocupação.

O VLT ficou numa situação ainda pior. Operou com 11% da capacidade e hoje trabalha com 35% de ocupação. O metrô trabalhou com 19% da capacidade. Agora, na média, opera com 45%.

Até o sistema aquaviário foi afetado. As barcas, antes da pandemia, transporta­vam cerca de 80 mil passageiro­s por dia. Hoje operam com 19 mil usuários por dia, de acordo com a Secretaria de Estado de Transporte­s.

Em Petrópolis, a situação é igualmente crítica. Estão transporta­ndo com apenas 25% de passageiro­s pagantes. Para garantir a primeira parcela do 13° salário aos rodoviário­s, as empresas tiveram que fazer empréstimo­s em instituiçõ­es financeira­s.

“O sistema de transporte pode entrar em colapso nos próximos dias em Petrópolis”, diz Isidro Rocha, presidente do Setranspet­ro (Sindicato das Empresas de Transporte Rodoviário de Petrópolis).

Para Armando Guerra Júnior, da Fetranspor, é preciso rever itens como tributação e benefícios. “Não dá mais para o passageiro no Rio pagar a conta integralme­nte”, diz. “Precisamos rever tributaçõe­s no transporte individual, desoneraçã­o fiscal e as gratuidade­s.”

Em alguns locais, as empresas já recebem suporte do poder público. Em Curitiba, desde o início da pandemia, em março, o transporte de ônibus circula com um socorro da prefeitura para compensar as perdas com a queda no número de passageiro­s.

O programa foi prorrogado por duas vezes e já repassou às empresas cerca de R$ 180 milhões até o final de 2020, com estimativa de aporte de mais R$ 120 milhões nos próximos seis meses.

Em maio, o Tribunal de Contas do Paraná chegou a suspender o subsídio após um pedido movido por sindicatos, que alegavam que o município criou uma despesa sem indicar recursos para custeá-la.

O órgão acabou liberando o auxílio, mas mantém acompanham­ento das despesas e chegou a verificar “in loco” a lotação dos veículos para comprovar o cumpriment­o das medidas de distanciam­ento social.

A situação não é diferente no extremo sul do país. Capital com uma das tarifas de ônibus mais caras do país (R$ 4,70), Porto Alegre tem visto o usuário de ônibus migrar para o transporte por aplicativo­s. Segundo o secretário de Mobilidade Urbana, Luiz Fernando Záchia, os consórcios que compõem o sistema de transporte na cidade tiveram um prejuízo de R$ 4,5 milhões ao mês no ano passado.

Entre as empresas que compõem o consórcio está a Carris, a única estatal. “A Carris está completame­nte deficitári­a. No ano passado, a prefeitura colocou R$ 66 milhões para mantê-la ativa”, diz Záchia, que é favorável à privatizaç­ão da empresa criada em 1872 por um decreto do imperador Dom Pedro 2º.

Para o secretário, porém, a privatizaç­ão no momento pode não atrair interessad­os.

“Primeiro, a passagem precisa ficar mais barata para atrair mais passageiro­s”, diz. A diminuição do valor pode ser atingida com revisão de gratuidade e fim dos cobradores, que receberiam capacitaçã­o para se tornarem motoristas.

Na tentativa de criar uma solução nacional para o problema, executivos tentam pôr de pé um novo marco regulatóri­o para o setor. A mobilizaçã­o ganhou força após o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ter vetado, em dezembro, um projeto de lei que previa o repasse de até R$ 4 bilhões a estados e municípios para custear o transporte público.

O objetivo da transferên­cia era permitir que os entes federados renegocias­sem contratos com empresas prestadora­s do serviço. Ao vetar o texto, Bolsonaro argumentou que houve “boa intenção do legislador”, mas disse que a nova despesa foi criada sem que houvesse estimativa de impacto orçamentár­io.

Parte do marco regulatóri­o proposto pelo setor prevê adaptações nas concessões. O atual sistema, baseado em receita com tarifas pagas pelos usuários, seria substituíd­o pelo ancorado em subsídios, bancados por estados e municípios, como acontece em São Paulo, Brasília e Curitiba.

A nova dinâmica ajustaria a adoção da gratuidade para alguns segmentos de passageiro­s. O tema é polêmico. São Paulo, por exemplo, suspendeu, em dezembro, a gratuidade para idosos entre 60 e 64 anos nas linhas municipais e intermunic­ipais. No início de janeiro, a Justiça determinou a volta do benefício.

Procurados para se pronunciar sobre os impactos da manutenção da gratuidade no transporte coletivo de São Paulo, os governos estadual e municipal não haviam se manifestad­o até a conclusão desta reportagem.

A situação do transporte público preocupa até a indústria de equipament­os. A Marcopolo, empresa com sede em Caxias do Sul (RS), referência na fabricação de carroceria­s de ônibus, é uma delas.

Segundo o diretor de estratégia da empresa, João Paulo Ledur, o transporte público vive um momento crítico e demanda uma solução setorial, que pode ser resolvida por um marco legal.

“Entendemos que o problema do transporte público no Brasil é da sociedade, pois trata-se de um serviço essencial à população”, afirma. “Um marco regulatóri­o pode trazer um fôlego.”

Segundo o presidente da Fabus (Associação Nacional dos Fabricante­s de Ônibus), Ruben Bisi, o setor terminou o ano com retração de 25% na produção em relação a 2019. Em janeiro de 2020, a previsão era que a produção terminaria o ano com um cresciment­o entre 10% e 12%.

“O setor sofreu muito e teve problemas até com o fornecimen­to e a alta no preço de matérias-primas, como aço, cobre e alumínio”, diz Bisi. “Isso fez com que os clientes pensassem duas vezes antes de renovar a frota, e os problemas financeiro­s do setor podem compromete­r 2021, se o governo não tiver linhas de crédito para os sistemas de mobilidade.”

Mas Bisi destaca que o cenário tende a ficar realmente mais promissor apenas após a vacinação. “Tudo ainda depende muito da vacina, é isso que vai fazer a população voltar a circular.”

Vinicius Torres Freire O colunista está em férias.

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Karime Xavier/Folhapress Vista de estação do metrô em São Paulo durante um dia de semana; passageiro­s temem contágio e transporte público no país agora opera com 61% da capacidade
 ?? Eduardo Knapp/Folhapress ?? Terminal Parque Dom Pedro 2º, no centro de São Paulo; fora do horário de pico, uso de coletivos despencou
Eduardo Knapp/Folhapress Terminal Parque Dom Pedro 2º, no centro de São Paulo; fora do horário de pico, uso de coletivos despencou

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