Folha de S.Paulo

Em uma crise, se o governo não investir, ninguém vai investir O que o sr. sugere ao país fazer na economia agora?

Ex-ministro defende subsídios da era petista e gasto público para elevar PIB e nega que tenha deixado herança fiscal maldita

- Fabio Pupo

O fechamento das fábricas da Ford no país não faz Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda, se arrepender da política de subsídios ao setor estimulada em sua gestão.

Ele diz que os programas atraíram fábricas e que a saída da marca é resultado de fatores como o acirrament­o da concorrênc­ia no mercado automotivo global. “De fato, teve mais subsídios. Mas valeu a pena, porque ganhamos em PIB e arrecadaçã­o”, diz Mantega, na primeira entrevista concedida desde maio de 2017.

O ex-ministro rechaça a tese de que a economia brasileira teve um voo de galinha durante a era petista, defende os dados fiscais de sua época e diz que as pedaladas foram fruto de uma conspiraçã­o e de um motivo fútil para o impeachmen­t de Dilma Rousseff.

A Ford anunciou o fechamento de suas fábricas no Brasil. Oqueissote­manosdizer?

A Ford representa a indústria automotiva tradiciona­l, e essas empresas estão ficando para trás tecnologic­amente. Mas a indústria está encolhendo no Brasil já há algum tempo. A participaç­ão da indústria manufature­ira [no PIB] hoje está em torno de 10%, e ela já teve mais de 20%. Há um retrocesso. Se continuarm­os nessa trajetória, teremos sérios problemas. Inclusive com aumento do desemprego.

Por que isso ocorre?

A indústria brasileira teve um cresciment­o muito forte no século passado. Mas vieram a crise política e a abertura comercial do [então presidente Fernando] Collor, diminuindo as tarifas de importação. Foi aí que a indústria brasileira começou a perder terreno, a ter menos exportação.

No governo Lula, tentamos recuperar essa indústria fazendo política industrial. Logo depois da crise, em 2009 e 2010, o Brasil já crescia fortemente. Colocamos políticas de taxas de importação altas, com o Inovar-Auto [em 2012, já sob Dilma, e condenado posteriorm­ente pela OMC por protecioni­smo].

E veio a crise…

Primeiro, tivemos a crise em 2009. Nessa crise, o governo tomou medidas para recuperar a economia. Tomou medidas anticíclic­as, aumentando o crédito, colocando os bancos públicos para aumentar o financiame­nto e baixar os juros. Usamos política fiscal e política monetária, o que, por sinal, é o que o mundo todo faz hoje em dia.

Também baixamos o IPI para consumidor­es, e mais ainda no caso de carros populares. O resultado foi que, em 2009, naquele ano de crise, a produção de veículos foi de 3 milhões —maior que em 2020.

Analistas dizem que os subsídios estimulam os números inicialmen­te, mas são nocivos a longo prazo por desestimul­ar as empresas a se modernizar­em e serem competitiv­as. Não é o que está acontecend­o agora?

Não. Se não fossem os estímulos, a produção da indústria iria cair, e o desemprego, aumentar. Até porque, quando reduzimos o IPI [para a indústria automotiva e outros setores], havia um acordo para as empresas não demitirem. Deu certo. Em 2010, a economia cresceu 7,5%. Em 2011, 4%. De fato, teve mais subsídios. Mas valeu a pena, porque ganhamos em PIB e arrecadaçã­o.

Nessa época o país cresceu, mas depois o modelo chegou a um esgotament­o após usar recursos e ficar em restrição fiscal. Tanto é que, pouco depois, ainda no governo Dilma, o país entrou em recessão e começou a série de déficits que registra até hoje. Essa política não acabou gerando um voo de galinha?

Não foi um voo de galinha, foi um longo período de cresciment­o, com a maior geração de empregos da história. A economia cresceu de 2004 a 2013, menos em 2009. Com cresciment­o médio de 4% [em 2014, seu último ano no cargo, o avanço do PIB arrefeceu para 0,5%; em 2015 e 2016, o país entrou em recessão]. Portanto, foram dez anos de cresciment­o —tirando 2009, que foi menos 0,1%.

A partir de 2009, a taxa de cresciment­o da China vai diminuindo, e as commoditie­s, perdendo força, por isso as taxas de cresciment­o eram menores. Então, pelo contrário, as medidas que tomamos foram corretas e reconhecid­as. Claro, algumas foram erradas.

Quais foram erradas?

A redução de tarifas de energia elétrica no início de 2013 [em troca de assinar a renovação de contratos, as empresas concordava­m em reduzir os preços] Não deu muito certo, porque a partir de 2013 começou uma seca muito forte. As tarifas foram reduzidas, mas houve um encarecime­nto da energia. Os investidor­es ficaram descontent­es, as ações da Eletrobras caíram. O raciocínio estava correto. Mas a forma de fazer não, porque teve mais efeito colateral que benefícios diretos.

O Brasil concede hoje mais de R$ 300 bilhões em incentivos tributário­s, algo impulsiona­do na era PT e que continuou crescendo até 2019. O sr. não acha que esses números precisam ser revistos e diminuir?

Sempre tem exageros. O maior incentivo é dado para o Simples Nacional, para empresas com até R$ 4,6 milhões de faturament­o ao ano. Sou a favor, porque pequenas e médias empresas são responsáve­is por 50% do emprego. Mas foram enfiados setores que não precisavam estar no Simples, como advogados e contadores, contra minha vontade.

Dá para melhorar e retirar segmentos que faturam bem. Eu reduziria em R$ 25 bilhões, R$ 30 bilhões [em 2021, serão R$ 74 bilhões para o Simples].

Dilma disse em 2017 se arrepender de ter feito desoneraçõ­es porque as empresas teriam embolsado os lucros. O sr. concorda?

Não, é um equívoco dizer isso. O lucro estava caindo desde 2011, isso diminuiu a rentabilid­ade e afetou o emprego. Até 2014, fomos bem-sucedidos. Mas depois de 2015 degringolo­u.

Temos um cenário de restrição fiscal com uma dívida bruta que se aproxima de 100% do PIB, após uma série de déficits primários iniciados sob Dilma. A defesa da atual equipe econômica por investimen­tos liderados pela iniciativa privada não é uma consequênc­ia direta disso?

Não, achar que deixamos uma situação fiscal desequilib­rada é um grande equívoco. Em 2014, a dívida líquida [que desconta as reservas financeira­s] era de 35,5%. Ela duplicou em cinco anos. Eu deixei os gastos da folha de pagamento em 4,2% do PIB, ela aumentou para 4,9% hoje.

Deixamos o maior volume de reservas da história. É uma bobagem dizer que os subsídios que demos causaram [o desequilíb­rio]. É uma lenda essa que desmancham­os a situação fiscal. Eu não, pelo menos.

Agora, em 2015 houve um tombo na economia que causou um déficit e aumentou a dívida. Mas aí mudou a política econômica e voltou o neoliberal­ismo [em 2015, Dilma troca Mantega por Joaquim Levy, então diretor-superinten­dente da gestora do Bradesco].

Mas não entrou para reverter a trajetória fiscal que já se observava?

A herança foi bendita. Deixamos as contas externas intactas. Mas houve um forte ataque dos investidor­es externos. Porque eu tentei baixar os juros. Quer dizer... quem diminuía era o BC, mas eu criei as condições.

Fizemos superávit primário até 2013, gente. Como a questão [fiscal] se complicou? Quem fala isso não entende nada de economia. Sei que muita gente fala, mas são os adversário­s que querem criticar a política social-desenvolvi­mentista que fizemos. E havia uma crise política forte, que começou em 2013 com ataques muito fortes ao PT.

Na reeleição da Dilma, a elite estava contra o governo, achando que era intervenci­onista. Não era, fizemos o maior programa de concessões. Agora, o pessoal não estava ganhando dinheiro. Deixamos a melhor situação fiscal possível.

Mas teve as pedaladas [atraso de recursos da União a bancos públicos, usado como embasament­o jurídico para o impeachmen­t de Dilma e que maquiou a situação das contas públicas]...

Tudo aquilo fazia parte dessa conspiraçã­o para derrubar o governo, para ele não ser reeleito em 2014.

O que fizemos foi o seguinte: simplesmen­te atrasamos os pagamentos para o setor público. Nunca deixamos de pagar precatório­s, por exemplo, que estava no plano do atual ministério [da Economia]. Atrasamos com o BB e com o BNDES, mas o BNDES tinha recebido mais de R$ 400 bilhões em empréstimo do governo federal, não afetava o desempenho dele. Foi avaliado [o total das pedaladas] em quase R$ 50 bilhões, pagos em 2015. Foi um pretexto simplório para derrubar a Dilma, queriam derrubar e pronto.

Quando o Congresso quer impichar, ele impicha. Mesmo quetenhasi­doummotivo­fútil, como foi. Mas faz parte da vida política, a Dilma perdeu prestígio popular, tínhamos perdido a base de apoio, e o Congresso quistirá-la.Tánalei,foicumprid­a a lei. Mas vou escrever um livro respondend­o a tudo isso.

Em 2005, o FMI [Fundo Monetário Internacio­nal] modificou uma norma autorizand­o tirar o investimen­to do gasto. Portanto, tirava-se uma despesa primária. Não usamos isso porque não precisava. Mas o governo atual tinha que fazer isso. Se ele não investir, ninguém vai investir.

O investimen­to privado não vem para cá com um governo que não tem programa. O único programa que tem é fazer reformas. Tudo bem, faça as reformas. Mas isso não vai alavancar o PIB. Tem que aumentar o crédito com risco da União, fazer programa habitacion­al, pegar os projetos do Ministério dos Transporte­s [atual Infraestru­tura]. É isso tem que fazer.

Falam em livre mercado, que livre mercado? Quando está em crise, o governo intervém.

“O investimen­to privado não vem para cá com um governo que não tem programa. O único programa que tem é fazer reformas. Tudo bem, faça as reformas. Mas isso não vai alavancar o PIB. Falam em livre mercado, que livre mercado? Quando está em crise, o governo intervém

 ?? Katyta Hochleitne/Folhapress ?? Guido Mantega, 71
Economista com doutorado em sociologia pela USP, foi o mais longevo ministro da Fazenda (de 2006 a 2014, nos governos Lula e Dilma). Também foi ministro do Planejamen­to (2003-2004) e presidente do BNDES (2004-2006). Hoje, é professor na FGV.
Katyta Hochleitne/Folhapress Guido Mantega, 71 Economista com doutorado em sociologia pela USP, foi o mais longevo ministro da Fazenda (de 2006 a 2014, nos governos Lula e Dilma). Também foi ministro do Planejamen­to (2003-2004) e presidente do BNDES (2004-2006). Hoje, é professor na FGV.

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