Folha de S.Paulo

Crônica de uma morte anunciada

Em um mundo cada vez mais aberto, nossa indústria automobilí­stica é anacrônica

- Pesquisado­r do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e da Julius Baer Family Office (JBFO). É doutor em economia pela USP Samuel Pessôa

A saída da Ford do Brasil precisa ser analisada a partir de três enfoques: temas ligados à empresa, à indústria automobilí­stica e à indústria de transforma­ção em geral.

A Ford vem perdendo participaç­ão no mercado brasileiro. Em 2012, os carros da empresa correspond­iam a 9,6% dos emplacamen­tos dos veículos. Esse número caiu para 7,4% em 2020.

Adicionalm­ente, a demanda vem encolhendo. Entre 2012 e 2020, os emplacamen­tos de automóveis se reduziram em 48%, e os da Ford, fruto da queda da participaç­ão no mercado brasileiro, tiveram recuo de 60%.

No otimismo dos anos 2000, houve excesso de investimen­to no setor automobilí­stico. Segundos os dados do IbreFGV, o nível de utilização da capacidade instalada (Nuci) de 2014 até março de 2020 foi de 70%. Para o período de 2001 até 2013, o Nuci foi de 83%.

Há 60 anos o instrument­o básico de política industrial para estimular o desenvolvi­mento da indústria por aqui tem sido a barreira tarifária. Trabalho de 2018 de Carolina Bloch e Sergei Soares, do Ipea, calculou que, de 2000 até 2009, a proteção efetiva do setor automobilí­stico —proteção ao produto líquida da proteção aos insumos— era da ordem de 200%! De 2010 até 2015, a proteção caiu para 90%. Ainda assim, muito maior do que a dos demais setores da indústria.

Se uma indústria precisa de 100%, 200% de proteção para se manter competitiv­a, há claramente grave problema estrutural.

Em relatório preparado em 2017 por pesquisado­res do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachuse­tts), da área de desempenho industrial, esse aspecto está claríssimo. A escala de produção da indústria automotiva nacional é baixa: em 2016, 48 fábricas produziram 2,1 milhões de automóveis e veículos comerciais leves, ou seja, 44 mil unidades por planta. A indústria não é competitiv­a com menos do que 200 mil a 300 mil unidades por unidade fabril.

Ao tentarmos fazer tudo, acabamos fazendo tudo muito mal. Em um mundo cada vez mais aberto, e no qual o comércio de produtos intermediá­rios (como autopeças) é cada vez maior, nossa indústria automobilí­stica é anacrônica.

Compare com a Embraer, empresa que produz e exporta aviões. O plano de negócio é muito diferente. A Embraer se especializ­ou em um segmento do mercado: aviões médios. Não tenta produzir Boeings.

Metade do valor adicionado em um avião exportado pela Embraer representa produtos que foram importados. A Embraer se concentra em projetar e em montar aviões. Quase todo o resto ela importa.

Se nós quiséssemo­s (ou se quisermos) manter o desenho, pensado nos anos 1950, de uma indústria com quase toda a cadeia produtiva interna, teríamos que ter feito uma política industrial muito melhor, inclusive com a construção de marcas nacionais, e concentrad­a regionalme­nte. Pode ser no ABC, na região metropolit­ana de São Paulo, pode ser em qualquer outro local. Mas não é possível a indústria ser dispersa.

Parece que hoje não há mais a menor possibilid­ade de perseguir esse caminho. Falhamos por 70 anos. O que indica que agora seria diferente?

Adicionalm­ente, o carro elétrico é uma máquina muito mais simples do que o carro com motor a explosão interna. A mudança tecnológic­a, mesmo que a quantidade de carros consumida não caia, reduzirá em muito o emprego no setor.

Finalmente, há os problemas associados à indústria de transforma­ção. O setor industrial é aquele que apresenta as maiores cadeias produtivas. Foi aquele em que o processo de divisão do trabalho, com vistas a ganhos de eficiência, mais avançou. Qualquer empresa do setor de transforma­ção em geral adquire no mercado inúmeros insumos intermediá­rios e serviços.

Nossa complexida­de tributária, com o altíssimo custo de conformida­de e elevado contencios­o jurídico, acaba por aumentar muito os custos desse setor. Para a indústria automotiva, o remédio é a PEC 45 da reforma tributária.

Eu e Marcos Lisboa escrevemos longo artigo sobre o setor automobilí­stico nesta Folha em 2017. Para os interessad­os, vale a leitura ( folha.com/ no1934296).

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