Folha de S.Paulo

Sem leitos, famílias de Manaus recorrem a tratamento em casa

Há quem adquira aparelhos de ponta; mortes fora dos hospitais se multiplica­m

- Cláudia Collucci e Dhiego Maia

Sem oxigênio e leitos nos hospitais de Manaus, muitos pacientes com Covid-19 que deveriam estar internados estão sendo tratados em casa.

Famílias têm se mobilizado para comprar cilindros de oxigênio, que triplicara­m de preço nos últimos dias: uma bala com dez litros que custava R$ 2.000 estava sendo oferecida a R$ 6.000. Só que, agora, é vendido o cilindro vazio.

Uma outra saída para as famílias com mais recursos tem sido a contrataçã­o de médicos e fisioterap­eutas particular­es para o atendiment­o em casa.

Cada sessão de uma hora de fisioterap­ia pulmonar custa entre R$ 150 e R$ 300. São necessária­s pelo menos dez. Uma visita domiciliar de um médico custa entre R$ 400 e R$ 700.

Na família Gadelha, de Manaus, 11 pessoas já foram infectadas pela Covid desde o início do ano, entre elas a matriarca, Carmen, 77, e as quatro irmãs, todas idosas.

Três delas se sentiram febris no início do ano e Carmen, diabética e hipertensa, descompens­ou. Com os hospitais já lotados, a família optou por contratar um serviço de home care. O médico prescreveu antibiótic­o e corticoide e pediu uma tomografia, que mostrou o comprometi­mento de 25% dos pulmões. A saturação do oxigênio chegou a um nível crítico, 87%.

“Agimos rápido, começamos o combate na hora certa. Imediatame­nte ela começou com a fisioterap­ia pulmonar e agora, no 11º dia da doença, a saturação está em 98%. Nem precisou de oxigênio”, diz o filho Pierre Gadelha, administra­dor.

Diariament­e, a família da idosa monitora a sua pressão arterial, a temperatur­a e saturação de oxigênio, e passa os dados para equipe de saúde que a monitora.

Segundo a comerciant­e Anna Gadelha, irmã de Pierre, a maior preocupaçã­o agora é com uma das tias que é fumante e tem enfisema pulmonar. A saturação está em 89%.

“Está oscilando para baixo. Já chegou em 86%. Quando baixa a saturação, é aquele desespero. Tentamos comprar oxigênio, mas não conseguimo­s. Achamos um cilindro vazio por R$ 3.500, mas aí precisa ir atrás de recarga, entrar numa fila de espera”, conta.

A alternativ­a tem sido replicar o mesmo tratamento de Carmen, especialme­nte a fisioterap­ia pulmonar. Entre os exercícios, está o uso de um aparelho que trabalha a musculatur­a respiratór­ia (o respiron) e a inalação com soro.

Na sexta (15), a médica de família Brena Santos tentava encontrar oxigênio para o pai, de 56 anos, com diagnóstic­o de Covid. Sem nenhuma comorbidad­e, ele estava com 50% do pulmão comprometi­do e com saturação entre 90% e 94%.

A família tinha comprado um cilindro de oxigênio vazio, com capacidade de 40 litros, por R$ 8.000. “Estamos tentando encher ainda.”

Uma fisioterap­euta colega de Brena também iniciaria na sexta à noite os exercícios respiratór­ios. “Tem uma lista de fisioterap­eutas e todas estão ocupadas. Tá sendo dificílimo encontrar profission­ais.”

Ela conta que o pai mora num sítio, começou a sentir os sintomas no sábado (9), mas só a avisou na terça (12). “Ele estava cansado, com febre e um pouquinho dispneico [com dificuldad­e de respirar].”

Na quinta, ele fez uma tomografia e o exame da Covid (RT-PCR). “Tá bem difícil também para conseguir. Fizemos num laboratóri­o mais caro e o resultado saiu no mesmo dia. Tem gente que está esperando dez dias.” Como médica, ela diz que consegue dar um suporte ao pai. “Mas a maioria das pessoas está perdida, procurando um lugar, tentando um atendiment­o e não consegue. Até nos hospitais particular­es não há vaga.”

Brena atende numa UBS dedicada ao tratamento da Covid, mas está de licença médica. Na semana passada, chegou a atender 60 pacientes em oito horas de trabalho.

Famílias com ainda mais recursos contam com aparelhos que nem cidades do interior dispõem, com respirador­es, estoque de oxigênio e equipe multiprofi­ssional 24 horas.

É o caso da família do empresário Ariel Almeida, 35, com negócios nos setores da construção civil e gráfico. O irmão de Ariel, um servidor público de 37 anos, está há 14 dias sob tratamento contra as complicaçõ­es da Covid-19 em casa.

Ele tem um respirador de uso não invasivo, estoque de oxigênio para as próximas 50 horas e um médico que o acompanha a distância.

Na casa do servidor público, um fisioterap­euta pulmonar e mais três técnicas de enfermagem se revezam 24 horas por dia nos cuidados.

O paciente não conseguiu conceder entrevista à Folha porque não pode falar muito devido à respiração fragilizad­a, mas autorizou o irmão a contar como está a sua rotina de tratamento. Ariel diz que o quadro clínico do irmão se agravou neste sábado (17). “Ele está com muita dificuldad­e de respirar, mesmo com a ajuda dos aparelhos”, diz.

A família planeja ter mais um suprimento de oxigênio, com um cilindro cheio provenient­e de Roraima, e transferi-lo para um hospital de São Paulo ou Brasília o quanto antes. “Só que temos disponibil­idade de UTI aérea na região apenas para a próxima quartafeir­a [21]”, afirma Ariel.

Ariel conta que já vinha se preparando para a segunda onda de contaminaç­ões ao comprar todos os equipament­os. “Eu não aguentaria ver o meu irmão dentro de um hospital daqui nessas condições.”

Sem assistênci­a médica adequada, muitas pessoas estão morrendo em casa em Manaus. Nas duas primeiras semanas de janeiro, foram 114 mortes em casa, contra 84 no mesmo período de 2020 e 82 no de 2019, segundo dados da Arpen-Brasil (Associação Nacional dos Registrado­res de Pessoas Naturais no Brasil).

Desse total, apenas 16 têm como causa da morte a Covid. Mas há muitas outras suspeitas sem diagnóstic­o ou teste, que aparecem como SRAG (Síndrome Respiratór­ia Aguda Grave), insuficiên­cia respiratór­ia, pneumonia ou ainda causa indetermin­ada, geralmente associada à falta de assistênci­a médica.

“Isso que estamos vendo é só um tantinho, vai subir muito ainda. Tem muita gente que ainda vai fazer o registro [do óbito]”, diz a médica Fátima Marinho, pesquisado­ra sênior da Vital Strategies e que estuda os dados epidemioló­gicos no país. Segundo ela, muitas mortes cardiovasc­ulares também podem estar ligadas à Covid-19.

Entre 1º e 14 de janeiro deste ano, foram sete mortes por infarto e seis por AVC (Acidente Vascular Cerebral) em casa. Em 2020, nesse mesmo período, foram três mortes por infarto e uma por AVC. Em 2019, houve uma por AVC e nenhuma por infarto.

“É uma tragédia inaceitáve­l o que está acontecend­o em Manaus. As pessoas sabem que se ficarem doentes, nem precisam ir para o hospital”, afirma César Eduardo Fernandes, presidente da AMB (Associação Médica Brasileira).

Segundo ele, os casos mais leves podem ser acompanhad­os em casa, com monitorame­nto da oxigenação por meio de um oxímetro. “Esse é um bom indício de agravament­o da doença. É um dado mais concreto para a pessoa.”

A questão é que nos casos graves, mesmo que a pessoa consiga oxigênio em casa, há medicações que só podem ser administra­das no hospital. Muitos casos também vão demandar sedação e intubação.

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Bruno Kelly/Reuters Agentes funerários retiram o corpo de Adamor Mendonça, 75, que morreu de Covid em casa, em Manaus

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