‘Orwelliano’ acabou por se tornar insulto universal sem se ater ao que há em ‘1984’
Depois dos eventos da semana passada, somos obrigados a questionar se Josh Hawley tinha consciência do que estava fazendo.
Ao que parece, o senador republicano do estado americano de Missouri achou que podia derrubar a eleição e mostrar que faz parte do povão, saudando a turba que logo invadiria o Capitólio —e, ao mesmo tempo, se retratar como pensador, alguém prestes a publicar “The Tyranny of Big Tech”. O que recebeu foi o cancelamento do contrato de publicação de seu livro.
Indignado, Hawley foi ao Twitter para descrever a ação da editora como um ataque à liberdade de expressão. Insistiu que ela estava se pautando pela esquerda. “Isto não poderia ser mais orwelliano.”
Hawley estava se inserindo na longa tradição de evocar o nome de Orwell como porrete em acertos de contas. No dia seguinte, quando o Twitter suspendeu a conta do presidente, o filho dele, Donald Trump Jr., anunciou que “a livre expressão não existe mais na América” e disse que “estamos vivendo no 1984 de George Orwell”.
Enquanto isso, o romance “1984” —em que um regime reprime a dissidência por meio da violência e da perversão da linguagem— disparou para o primeiro lugar na lista dos mais vendidos da Amazon.
As vendas de “1984” funcionam como barômetro do nível de preocupação nacional. Elas subiram em 2013, depois de Edward Snowden ter revelado a abrangência do Estado que espiona seus cidadãos, e novamente no início de 2017, quando Kellyanne Conway, então assessora de Trump, defendeu mentiras demonstráveis como tais, as descrevendo como “fatos alternativos”.
Apesar de os críticos de Hawley argumentarem que seu uso do termo “orwelliano” é em si orwelliano, há uma razão para supor que “orwelliano” tenha virado um epíteto universal, uma acusação que serve para tudo. Todos concordam que o mundo retratado em “1984” é uma distopia .
Orwell se preocupava com a realidade consensual —sua necessidade e vulnerabilidade. Em “Homage to Catalonia” narrou sua experiência como voluntário na Guerra Civil espanhola, testemunhando os republicanos devorarem os seus. A partir do momento em que sua visão compartilhada do mundo começou a se fragmentar, eles começaram a denunciar uns aos outros como mentirosos e traidores.
De acordo com o dicionário Oxford, o termo “orwelliano” começou como descrição abreviada e espirituosa usada por críticos literários quando a escritora Mary McCarthy o empregou num ensaio de 1950 para descrever uma revista de moda que não tinha “nenhum ponto de vista exceto a autodivulgação”.
Desde então o termo já foi usado para descrever fenômenos tão diversos quanto o jargão eufemístico da indústria nuclear, a retirada de tropas do Vietnã e um eletrodoméstico culinário dos anos 1960 que produzia café ou sopa a partir de misturas em pó.
Não é preciso ter lido “1984” para entender por que alguém está descrevendo alguma coisa como orwelliana, mesmo que se discorde da descrição. Mas alguém que não tenha lido o livro pode ser mais suscetível à manipulação do termo.
Hawley, Trump Jr. e outros da direita usam “orwelliano” para se queixar da cultura do cancelamento, mas “1984” não é tanto um tratado sobre o caráter absoluto da livre expressão quanto um aviso sobre os perigos da degradação da linguagem e a potência da propaganda política letal.
Mas mesmo essa não passa de uma descrição simplificada de um livro que é mais sofisticado do que a história moralista que frequentemente é retratada como assim sendo.
Em “The Ministry of Truth”, Dorian Lynskey argumenta que o romance é estruturado de uma maneira que intensifica sua ambiguidade. Sim, a força bruta do totalitarismo é um tema, masa narração— com seus textos no interior de textos— também encena sua própria fantasmagoria, um mundo onde ao mesmo tempo tudoéverd ade e nada oé.
Lynskey diz que Orwell antecipou o que Hannah Arendt descreve em “As Origens do Totalitarismo”. “O súdito ideal do governo totalitário nãoéo nazista convicto ou o comunista convicto, mas apessoa para quem a distinção entre fatos e ficção (ou seja, a realidade da experiência) e a distinção entre verdadeiro e falso (ou seja, os padrões do pensamento) deixaram de existir.”
Em 2002 Christopher Hitchens escreveu “Why Orwell Matters” em que elogiou a independência de pensamento do autor. Um ano mais tarde, ele aderiu ao coro em favor da invasão do Iraque, causa que apoiaria inabalavelmente até sua morte em 2011, mesmo depois de vir à tona que o pretexto não passava de uma farsa.
Em “Politics and the English Language”, Orwell discutiu as “metáforas moribundas” — frases gastas quenos permitem pô rabo cano trombone sem prestar muita atenção. Os exemplos incluíram“calcanhar de Aquiles” e “canto do cisne”. Se tivesse vivido o suficiente, poderia ter acrescentado “orwelliano” à lista.