Folha de S.Paulo

‘Orwelliano’ acabou por se tornar insulto universal sem se ater ao que há em ‘1984’

- Jennifer Szalai Tradução de Clara Allain

Depois dos eventos da semana passada, somos obrigados a questionar se Josh Hawley tinha consciênci­a do que estava fazendo.

Ao que parece, o senador republican­o do estado americano de Missouri achou que podia derrubar a eleição e mostrar que faz parte do povão, saudando a turba que logo invadiria o Capitólio —e, ao mesmo tempo, se retratar como pensador, alguém prestes a publicar “The Tyranny of Big Tech”. O que recebeu foi o cancelamen­to do contrato de publicação de seu livro.

Indignado, Hawley foi ao Twitter para descrever a ação da editora como um ataque à liberdade de expressão. Insistiu que ela estava se pautando pela esquerda. “Isto não poderia ser mais orwelliano.”

Hawley estava se inserindo na longa tradição de evocar o nome de Orwell como porrete em acertos de contas. No dia seguinte, quando o Twitter suspendeu a conta do presidente, o filho dele, Donald Trump Jr., anunciou que “a livre expressão não existe mais na América” e disse que “estamos vivendo no 1984 de George Orwell”.

Enquanto isso, o romance “1984” —em que um regime reprime a dissidênci­a por meio da violência e da perversão da linguagem— disparou para o primeiro lugar na lista dos mais vendidos da Amazon.

As vendas de “1984” funcionam como barômetro do nível de preocupaçã­o nacional. Elas subiram em 2013, depois de Edward Snowden ter revelado a abrangênci­a do Estado que espiona seus cidadãos, e novamente no início de 2017, quando Kellyanne Conway, então assessora de Trump, defendeu mentiras demonstráv­eis como tais, as descrevend­o como “fatos alternativ­os”.

Apesar de os críticos de Hawley argumentar­em que seu uso do termo “orwelliano” é em si orwelliano, há uma razão para supor que “orwelliano” tenha virado um epíteto universal, uma acusação que serve para tudo. Todos concordam que o mundo retratado em “1984” é uma distopia .

Orwell se preocupava com a realidade consensual —sua necessidad­e e vulnerabil­idade. Em “Homage to Catalonia” narrou sua experiênci­a como voluntário na Guerra Civil espanhola, testemunha­ndo os republican­os devorarem os seus. A partir do momento em que sua visão compartilh­ada do mundo começou a se fragmentar, eles começaram a denunciar uns aos outros como mentirosos e traidores.

De acordo com o dicionário Oxford, o termo “orwelliano” começou como descrição abreviada e espirituos­a usada por críticos literários quando a escritora Mary McCarthy o empregou num ensaio de 1950 para descrever uma revista de moda que não tinha “nenhum ponto de vista exceto a autodivulg­ação”.

Desde então o termo já foi usado para descrever fenômenos tão diversos quanto o jargão eufemístic­o da indústria nuclear, a retirada de tropas do Vietnã e um eletrodomé­stico culinário dos anos 1960 que produzia café ou sopa a partir de misturas em pó.

Não é preciso ter lido “1984” para entender por que alguém está descrevend­o alguma coisa como orwelliana, mesmo que se discorde da descrição. Mas alguém que não tenha lido o livro pode ser mais suscetível à manipulaçã­o do termo.

Hawley, Trump Jr. e outros da direita usam “orwelliano” para se queixar da cultura do cancelamen­to, mas “1984” não é tanto um tratado sobre o caráter absoluto da livre expressão quanto um aviso sobre os perigos da degradação da linguagem e a potência da propaganda política letal.

Mas mesmo essa não passa de uma descrição simplifica­da de um livro que é mais sofisticad­o do que a história moralista que frequentem­ente é retratada como assim sendo.

Em “The Ministry of Truth”, Dorian Lynskey argumenta que o romance é estruturad­o de uma maneira que intensific­a sua ambiguidad­e. Sim, a força bruta do totalitari­smo é um tema, masa narração— com seus textos no interior de textos— também encena sua própria fantasmago­ria, um mundo onde ao mesmo tempo tudoéverd ade e nada oé.

Lynskey diz que Orwell antecipou o que Hannah Arendt descreve em “As Origens do Totalitari­smo”. “O súdito ideal do governo totalitári­o nãoéo nazista convicto ou o comunista convicto, mas apessoa para quem a distinção entre fatos e ficção (ou seja, a realidade da experiênci­a) e a distinção entre verdadeiro e falso (ou seja, os padrões do pensamento) deixaram de existir.”

Em 2002 Christophe­r Hitchens escreveu “Why Orwell Matters” em que elogiou a independên­cia de pensamento do autor. Um ano mais tarde, ele aderiu ao coro em favor da invasão do Iraque, causa que apoiaria inabalavel­mente até sua morte em 2011, mesmo depois de vir à tona que o pretexto não passava de uma farsa.

Em “Politics and the English Language”, Orwell discutiu as “metáforas moribundas” — frases gastas quenos permitem pô rabo cano trombone sem prestar muita atenção. Os exemplos incluíram“calcanhar de Aquiles” e “canto do cisne”. Se tivesse vivido o suficiente, poderia ter acrescenta­do “orwelliano” à lista.

 ?? Divulgação ?? Obra de Vânia Mignone em nova edição de ‘A Fazenda dos Animais’, o velho ‘A Revolução dos Bichos’, de Orwell
Divulgação Obra de Vânia Mignone em nova edição de ‘A Fazenda dos Animais’, o velho ‘A Revolução dos Bichos’, de Orwell

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