Folha de S.Paulo

Algoritmo cardíaco

Por razões de saúde, não tenho redes sociais

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’

Por razões de saúde, não tenho redes sociais, mas admiro a resistênci­a de quem tem.

O Facebook, uma rede de amigos que foi criada por um jovem que não sabe o que a amizade é, pergunta, assim que se entra: “Em que estás a pensar?”. Descobri cedo que, quando respondo a esta pergunta, o resultado é frequentem­ente desastroso.

O Twitter, permitindo que as pessoas se exprimam num número bastante reduzido de caracteres, desmentiu a ideia antiga segundo a qual quanto menos se fala, mais se acerta. Não necessaria­mente, como se vê.

O Instagram também veio revelar que quem disse que uma imagem valia mais do que mil palavras não fez bem as contas. E confesso que ainda não percebi o que é o TikTok.

As redes sociais são a vitória ideológica da imprensa rosa e a derrota comercial da imprensa rosa. Ideologica­mente, as revistas ganharam: a ideia de que a vida privada deve manter-se privada, de fato, acabou.

Do ponto de vista comercial, as revistas perderam: o trabalho (vamos dizer trabalho, para facilitar) dos paparazzi passou a valer menos ou nada, e não parece ser bom negócio pagar por uma publicação que promete revelações sobre a intimidade dos famosos quando eles a exibem gratuitame­nte todos os dias.

Uma pessoa do século 20, como eu, tem legítimas razões para desconfiar das redes sociais.

No meu tempo, a gente abominava tudo, ou quase tudo o que nas redes sociais é normal.

Nós achávamos que falar de nós não era muito bonito, as redes sociais encorajam-nos a sermos testemunha­s de Jeová de nós próprios; nós achávamos que a vaidade era patética, nas redes sociais é admissível republicar os elogios que nos fazem; nós achávamos que dedurar era execrável, as redes sociais têm um botão para “denunciar” abaixo de cada post.

Como não me pegam pelas redes sociais, as empresas tecnológic­as montam-me armadilhas no YouTube. Só me sugerem vídeos parecidos com os que eu costumo ver. Pensam que me conhecem. Por isso, todos os dias eu deixo a tocar vídeos que em princípio não veria, para enganar o algoritmo.

Seja quem for que está a tirar notas sobre as minhas preferênci­as, na sede do YouTube, ficou a saber que hoje eu vi um vídeo em que nove narizes gigantes fazem sapateado e outro sobre o campeonato mundial de passar roupa a ferro em condições extremas (debaixo de água, de cabeça para baixo pendurado numa árvore, em cima de uma vaca, etc.). Mas depois vou pesquisar vídeos desinteres­santes, para embaralhar.

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Luiza Pannunzio

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