Folha de S.Paulo

Desafio no corpo a corpo

Professora de dança da favela da Maré me mostrou que outro mundo é possível

- Hermano Vianna Antropólog­o, escreve no blog hermanovia­nna.wordpress.com

Vivemos tempos medonhos. Impossível para mim, apesar do esforço, entender como chegamos aqui, o que deu errado no caminho. Tento me agarrar a qualquer migalha de bondade, de boa notícia. É parte de minha sede desesperad­a de marcha das utopias. Meu escudo para tentar não me contaminar com tudo de ruim em volta. Mantra: vai melhorar.

Em 2020, nesta época de início do ano, tudo me parecia pessoalmen­te promissor. Claro, havia muitos problemas, bem próximos. Porém, estava conseguind­o me livrar da sensação derrotista na qual tinha afundado antes, quando muitas das minhas mais queridas apostas pareciam ter se transforma­do em fracassos retumbante­s. Que país é este? Que internet é esta?

Aos pouquinhos, ao me obrigar a me envolver com novos projetos, fui descobrind­o motivos cada vez mais claros para nova animação.

De repente, me vi circulando freneticam­ente pela cidade. O trabalho que mais me animava era a pesquisa para um documentár­io que tinha a ver com coreografi­a e Guimarães Rosa. Conheci Lia Rodrigues e ela me levou para o Centro de Artes da Maré, onde fica a sede da sua companhia de dança com muito prestígio mundial.

Janeiro e fevereiro foram meses de aproximaçã­o: é época quente demais naqueles galpões para realizar as atividades da Escola Livre de Dança da Maré. Tive a sorte de ser guiado por Silvia Soter, uma das principais pensadoras das artes corporais brasileira­s, que ajudou a criar a estratégia pedagógica local.

As aulas começaram em março. Acompanhei o início de todos os oito cursos, destinados a faixas etárias distintas, do avô pedreiro na dança de salão à criança no seu primeiro contato com sapatilhas de balé. Ao lado, Lia Rodrigues e companhia embalam figurinos que seriam usados na excursão europeia do espetáculo “Fúria”.

Muita gente interessan­te reunida ali. O professor de dança urbana era Renato Cruz, revelação da dança contemporâ­nea carioca com sua Companhia Híbrida. Cristina Moura, outro nome de ponta na vanguarda coreográfi­ca nacional, lidera uma oficina com o Núcleo 2, projeto profission­alizante da escola. Gabriel Lima, coordenado­r da escola, dá aula de danças afro-brasileira­s.

Vejo um aluno, adolescent­e morador da Maré, com a mochila carregada. Espio o conteúdo: quantidade impression­ante de livros. Cheio de si, ele diz que preciso conhecer a biblioteca que tem em casa.

Além da dança e da leitura, é nerd fascinado por computador­es e um dos melhores alunos de eletrônica na melhor escola técnica da cidade.

Da mochila de outro aluno sai uma Bíblia. Frequenta a igreja neopenteco­stal do outro lado da rua. Seu sustento também está ligado ao cresciment­o evangélico nas periferias do Rio de Janeiro: quase todos os templos têm um “ministério de dança” que precisa de professore­s.

Diversidad­e impression­ante de formações e motivos para estar ali. Em comum: amor pela dança. Isso fica bem claro nas aulas de introdução ao balé clássico. A professora, Sylvia Barreto, é extremamen­te exigente. Não admite nem variações de cores nas redes que prendem os cabelos das bailarinas crianças.

Sempre disciplina, rigor, elegância. Mesmo quando tem que interrompe­r a música da aula, armazenada no seu celular, para negociar com a oficina da frente um tempinho com o barulho ensurdeced­or da serra elétrica. Ou, quando chove, ao improvisar baldes para reduzir o estrago das goteiras-cachoeiras do telhado que precisa de obra.

Seus cabelos já brancos denunciam a longa trajetória: bailarina do Stagium por volta de 1980, quase 20 anos como professora na Tatiana Leskova e muita história mais. Agora, quase todos os dias da semana, sai da zona sul de ônibus público para chegar na Maré. Nenhuma afetação por conta disso, nenhum teatro de heroísmo. É benfeitori­a sem nenhuma ostentação.

Sylvia Barreto me mostrou, na prática, que um outro mundo é possível. Não como projeto futuro. Agora mesmo.

Eu estava nesta, mergulhand­o em outro mundo possível, quando chegou a quarentena. As aulas de balé pararam. Houve tentativas, mas dança não é “amigável” no mundo Zoom e cia, sobretudo com crianças. O desafio tem que ser no corpo a corpo.

O Centro de Artes foi ocupado por ações da Redes da Maré na campanha “Maré diz NÃO ao coronavíru­s”, com distribuiç­ão de toneladas de alimentos e itens de higiene para milhares de famílias, vacinação contra gripe, acompanham­ento de testagem para detectar Covid e tantas outras ações urgentes. Ações bemplaneja­das, incluindo divulgação de informação confiável sobre a pandemia.

Tudo na marra. As dificuldad­es são enormes. Precisam cada vez mais de parcerias. Siga o exemplo da Fondation Hermès. Há também campanha de doação em andamento.

O Centro de Artes foi ocupado por ações da campanha “Maré diz NÃO ao coronavíru­s”, com iniciativa­s bem-planejadas, incluindo divulgação de informação confiável sobre a pandemia. Tudo na marra | dom. Bernardo Carvalho, Jorge Coli, Marilene Felinto, Hermano Vianna

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