Fatos alternativos
Filmes e séries de época, como ‘Bridgerton’, estão reescrevendo a história ao imaginar passados sem preconceito em que negros estão no comando e gays são livres para amar
Filmes e séries de época reescrevem a história com negros e gays no comando
É temporada de debutantes na Inglaterra do início do século 19. Cada jovem dama da aristocracia é apresentada à rainha e passa a frequentar eventos sociais pomposos em busca de um marido. Um dos mais aguardados bailes acontece na propriedade de Lady Danbury, onde as saias dos vestidos se aglomeram no salão e formam um emaranhado de cores que se entrelaçam delicadamente.
Eis que uma figura esbelta surge na multidão e capta a atenção dos convidados. É o duque de Hastings e, ao contrário do que os leitores da série de livros “Bridgerton” e outros fãs de romances de época esperavam, ele é um homem negro —e não atrai os olhares pela cor de sua pele, mas por ser o solteiro mais respeitado e cobiçado de Londres.
Lançada no final do ano passado, a adaptação da obra para a TV tem frequentado as listas de mais vistos da Netflix. Para além do poder de persuasão de sua trama novelesca, “Bridgerton” tem suscitado debates por apresentar uma aristocracia inglesa muito mais diversa do que ela foi na vida real.
Nos bailes da alta sociedade das telas, personagens brancos, negros e asiáticos dançam juntos como se a Inglaterra da época não comandasse um império com colônias em todos os continentes do globo, que, por sua vez, fazia uso de mão de obra escrava.
A decisão faz sentido se levado em conta que o seriado é uma produção de Shonda Rhimes, hoje uma das figuras mais poderosas da TV americana, habituada a inserir a diversidade em suas séries de maneira naturalizada. Além disso, ela segue uma tendência que vem sendo observada na indústria nos últimos anos, o “color-blind casting”, ou algo como uma escolha de elenco cega à cor da pele.
É uma seleção de atores que ignora a etnia ao distribuir os papéis. Há ainda a chamada escalação não tradicional, que se estende a características como gênero e corpo.
Outras produções que seguiram essa tendência incluem o live-action de “A Bela e a Fera”, que apesar de ser um conto de fadas é ambientado na França do século 18, e “Duas Rainhas”, que põe a atriz de origem chinesa Gemma Chan na corte de Elizabeth 1ª. Ainda neste ano, deve estrear uma nova versão de “Macbeth”, com Denzel Washington no papel do rei da Escócia.
Mas apesar de o termo “color-blind casting” ter fervilhado nas discussões sobre “Bridgerton”, a obra engana seus telespectadores. Lá para o meio da série, descobrimos que os atores negros em papéis de nobres estão, sim, em cena por um motivo. A trama faz uma provocação à ascendência da rainha Charlotte, que segundo pesquisadores seria mestiça —traço apagado dos livros e retratos.
Mesmo que não apareça na saga literária de Julia Quinn, a monarca, na adaptação para a TV, é interpretada por uma atriz negra, que ostenta altas e glamorosas perucas —com referências ao black power. Durante uma conversa, ficamos sabendo por Lady Danbury, também negra, que “éramos duas sociedades separadas, divididas pela cor, até um rei se apaixonar por uma de nós”.
“O que chamamos de história é contado por um mesmo ponto de vista. Precisamos entender os apagamentos feitos ao longo dessa história. A premissa de ter uma rainha afrodescendente, trazendo um debate para o centro da trama, é interessante porque mostra que nós negros possivelmente estávamos lá. A série é menos uma provocação e mais uma possibilidade”, diz Ana Paula Alves Ribeiro, antropóloga e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Mas, mesmo sendo calcada em pesquisas que sugerem uma corte mais plural no século 19, a diversidade de “Bridgerton” também atraiu detratores. Houve quem dissesse que a obra é uma péssima aula de história, por exemplo.
Já outros apontaram que ela apaga a luta pelos direitos da população negra e inviabiliza relatos de fato plurais, dando a falsa sensação de diversidade.
“Vitória seria não precisar dessas apropriações; vitória seria contar histórias novas com vozes novas”, escreveu o colunista João Pereira Coutinho nas páginas deste jornal.
A intenção, porém, nunca foi fazer de “Bridgerton” uma série realista. Ela é uma ficção, vêm dizendo seus produtores, algo corroborado por delírios amorosos e a trilha sonora pop, que a cobrem com um verniz de conto de fadas.
Segundo Fernanda Oliveira, historiadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é preciso cuidado ao separar realidade e ficção. Obras como “Bridgerton”, diz, são ótimas para aumentar a diversidade nas telas, mas em paralelo deve haver um debate acadêmico, nas salas de aula, que amplie esse tipo de discussão.
“O papel da arte é imaginar outros mundos, e isso a diferencia da história. Ela nos permite imaginar um passado para projetar um futuro. Nós não podemos alterar o passado, negar que aquela riqueza [da aristocracia inglesa] era possibilitada por um histórico escravocrata, mas não podemos engessar a ficção, porque ela nos faz refletir sobre a sociedade de hoje”, afirma.
Tanto ela quanto Alves Ribeiro, a antropóloga, reiteram, no entanto, que a diversidade nas produções também segue uma lógica de mercado. Cada vez mais, estúdios têm notado que, ao representar um público amplo, podem ao mesmo tempo ampliar sua audiência.
E, se por um lado “Bridgerton” aposta numa diversidade racial, a série vem sendo acusada de “queerbaiting” — quando uma relação homossexual é insinuada, mas nunca consumada. Em seu trailer, o título exibiu com destaque uma cena de sexo gay, embora os episódios não se aprofundem em personagens LGBTs.
Estratégias de audiência à parte, “Bridgerton” é uma produção que imagina um passado alternativo. Esse tipo de roteiro agora está em alta na TV e no cinema, seja para brincar com eventos importantes, como Quentin Tarantino fez em “Era Uma Vez em… Hollywood”, ou pela diversidade.
Também lançada pela Netflix, a série “Hollywood” faz isso muito bem. Enquanto Shonda Rhimes advoga pela pluralidade racial na TV, o produtor do título, Ryan Murphy, faz o mesmo pelos LGBTs.
Em “Hollywood”, ele imagina uma indústria cinematográfica dos anos 1950 muito mais tolerante a questões raciais e à homossexualidade. Gays flertam abertamente nas festas e uma jovem negra é escolhida —e celebrada— como a protagonista de um grande longa americano. Depois do sucesso, o estúdio da trama decide investir num filme de romance com dois homens.
Nos palcos, outra produção que embaralhou a etnia dos personagens, dessa vez verídicos, foi “Hamilton”. O musical acompanha um dos pais fundadores dos Estados Unidos e tem elenco composto quase inteiramente por negros, latinos e asiáticos, em papéis como o de George Washington.
Intérprete do vice-presidente à época Aaron Burr, Leslie Odom Jr. diz que essas releituras servem como um primeiro passo em direção a uma sociedade mais integrada e justa.
“Nós aprendemos a história do mito da América, que convenientemente deixa de fora as experiências dos indígenas e dos escravizados”, ele afirma. “A subversão que ‘Hamilton’ faz nos leva a refletir sobre quem é que conta a história que nos é ensinada.”
Quem é fã das adaptações cinematográficas dos romances de Jane Austen talvez tenha ficado com a pulga atrás da orelha ao assistir à série “Bridgerton”, da Netflix.
Os vestidos que as debutantes usam nos bailes até parecem com aqueles das irmãs Bennet em “Orgulho e Preconceito”, com suas mangas curtas, decotes profundos e cinturas lá em cima. Mas são quase uma versão em tecnicolor deles, com camadas extras de brilho e saturação.
Isso porque, da mesma forma que a série se distancia do real ao mostrar negros como nobres no início do século 19, quando a escravidão ainda era vigente no Reino Unido, os figurinos também extrapolam todo esse contexto histórico.
Em entrevista à revista Harper’s Bazaar, a figurinista da produção, Ellen Mirojnick, afirmou que buscava na série a visualidade das publicações de moda atuais, cheias de contraste e matizes vibrantes.
Essa discrepância em relação ao período é especialmente clara nas cores dos figurinos, segundo Carolina Casarin, professora de história da moda e indumentária e doutora pela Escola de Belas Artes da a Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ.
Ela afirma que tons estridentes como o amarelo-ovo que Penelope, a caçula dos Featherington, é obrigada a usar pela mãe, nem eram viáveis para a tecnologia têxtil da época. Elas só começaram a aparecer nos tecidos em meados daquele século, com a criação de pigmentos artificiais.
“É claro que já existia o roxo, por exemplo”, afirma Casarin. “Mas ele significa luxo e poder justamente porque era muito difícil de conseguir.”
O mesmo vale para as roupas suntuosas do playboy duque de Hastings. Seus coletes bordados e casacas coloridas chamam atenção justamente por não adotarem as cores neutras que viravam norma no guarda-roupa masculino —preto, cinza, marrom.
No caso dele, porém, a equipe de arte parece voltar no tempo, em vez de avançar, diz Casarin. Eram os nobres do Antigo Regime que vestiam tecidos coloridos e estampados, o que resultava em roupas bem parecidas com as das mulheres da mesma época, segundo a professora. “É só depois da Revolução Francesa que as vestes masculinas e femininas ficam diferentes.”
Já os tons claros que a mocinha Daphne desfila eram os mais comuns então. E não só para transmitir a pureza de uma jovem dama em busca de um pretendente.
Casarin diz que peças brancas eram valorizadas nos guarda-roupas de ambos os sexos porque comunicavam asseio e, desse modo, riqueza — como os nobres não trabalhavam, significava que alguém tinha limpado aquilo tudo.
A quantidade de trocas de roupa da protagonista também é bem fiel aos tempos. Mirojnick afirmou à Harper’s Bazaar que Daphne tem 104 figurinos diferentes. Roupas e acessórios da série somam em torno de 7.500 itens.
“Temos que lembrar que as mulheres mudavam de roupa a cada evento que frequentavam, inclusive os que aconteciam dentro de casa ”, diz Casarin, acrescentando que isso se prolonga até o século 20.
Ela afirma, porém, que mesmo produções que são mais fiéis a uma reconstrução histórica não poderiam ser tachadas de realistas. Em parte, porque muitas vezes as referências usadas para a elaboração delas são também representações, como pinturas e relatos.
Além disso, “quando mais para trás vamos, pior as roupas vestiam”, conta Casarin. Por isso, qualquer figurino bem-ajustado no corpo não é realista. “Mas é claro que ninguém vai pôr roupas malajambradas nesses atores.”