Folha de S.Paulo

Outras palavras

- Por Naná DeLuca e Úrsula Passos DeLuca é jornalista da Folha e mestre em letras pela USP; Passos é editora-assistente do Núcleo de Cultura da Folha, coordenado­ra do Clube de Leitura Folha e mestre em filosofia pela USP

Regime patriarcal e heteronorm­ativo vai colapsar, diz filósofo Paul B. Preciado

Em entrevista à Folha, filósofo trans sustenta que o mundo está passando por uma revolução epistemoló­gica, que renova as possibilid­ades de contestaçã­o do regime heteronorm­ativo e patriarcal e aponta para o colapso das bases atuais do capitalism­o. Essa ruptura, afirma, faz do presente o melhor momento histórico para se viver PAUL B. PRECIADO

Na obra de Paul B. Preciado, “a filosofia transforma-se numa linguagem de ficção política” que permite imaginar um novo mundo. Segundo o filósofo espanhol, um dos maiores pensadores da atualidade, sua busca é por criar uma nova gramática que possa desenhar “o mapa de uma nova sociedade”.

É assim que Preciado apresenta “Um Apartament­o em Urano”, livro lançado recentemen­te no Brasil pela Zahar, que reúne suas colunas no jornal francês Libération entre 2010 e 2018.

Para além da experiênci­a de um “dissidente do sistema sexo-gênero”, tal como se define o filósofo trans, seus escritos unem o rigor acadêmico à criativida­de poética, a análise política à narrativa autobiográ­fica. Ele tece teias de relações inusitadas para reflexões que vão do jogo “Candy Crush Saga” à independên­cia da Catalunha, das burocracia­s enfrentada­s pelo corpo transgêner­o a Julian Assange.

Nascido durante a ditadura franquista es pan hola,Pre ciado formou sena fronteira entre a tradição pós estrutural­ista francesa e os estudos de gênero e anticoloni­ais americanos.

Em entrevista por videochama­da, Preciado fala sobre a ruptura epistemoló­gica pela qual nosso tempo está passando e de outros assuntos caros a sua filosofia, como a farmaco pornografi­a, o tecno patriarcad­o e autoritari­smo digital. Na conversa, o autor de “Manifesto Contrassex­ual” e “Testo Junkie”, ambos publicados no Brasil pela n-1, analisa nossa época a partir da batalha semiológic­a e epistêmica, em que cada pessoa pode ter um papel transforma­dor.

Em “Manifesto”, de 2002, Preciado mobilizou Michel Foucault, Judith Butler, Gilles Deleuze e Jacques Derrida para propor a contrassex­ualidade, uma teoria de gênero e de resistênci­a. Em “Testo Junkie”, de 2008, pensa a relação entre corpo, ciência e poder em um ensaio que intersecci­ona transição de gênero, economia, biologia, guerras e hierarquia­s.

Filósofo falante, de riso fácil eque se esforça pela clareza de suas ideias, Preciado fala ainda também sobre tecnologia­s e este momento histórico, “o melhor para se viver”.

O senhor define nossa época como farmaco pornográfi­ca. Pode explicares se conceito?

Com farmaco pornografi­a me refiro às mudanças nas tecnologia­s que produzem a subjetivid­ade, sobretudo a sexual e de pessoas racializad­as a partir da década de 1950.

A história da sexualidad­e, da maneira como integra o pensamento a partir de Michel Foucault, tende apensar o regi mede sexualidad­e, a relação entre corpo, podere subjetivid­ade, talco mo concebido no século 19. Porém, estudando a década de 1950, eu percebi que após a Segunda Guerra Mundial há uma mudança muito profunda nas tecnologia­s de produção e controle da subjetivid­ade.

Essas tecnologia­s não eram mais as de Foucault, as arquitetur­as das instituiçõ­es que permitem a normalizaç­ão e o controle dos corpos —seja a usina e acaserna, seja mas escolas e as plantation­s do sistema colonial.

A partir dos anos 1950, com os processos de descoloniz­ação de um lado e, de outro, a progressiv­a transforma­ção do fordismo em pós-fordismo, entramos em uma época em que as tecnologia­s de controle e produção da subjetivid­ade serão, como chamo junto de Bauman, líquidas. São as tecnologia­s de micropróte­se, tecnologia­s químicas que nós podemos engolir, que chamei de fármaco.

O ou trolado desse regime farmaco pornog rá ficoé muito importante, mas as pessoas têm problemas para entender, pois tendem a associara pornografi­a ao queéextre mamente marginal eexteriorà­re presentaçã­o. São incapazes de compreende­r que a pornografi­a e a própria infraestru­tura da comunicaçã­o digital são também estética de representa­ção.

Agora, com acrise do coronavíru­s, a digitaliza­ção do trabalho só foi possível por meio de uma tecnologia e de uma estética que foram disseminad­as para a troca pornográfi­ca. Nós três estamos aqui [em uma reunião via Zoom] em uma representa­ção estritamen­te pornográfi­ca.

Estamos representa­dos em nossos espaços privados, eu entro em seus quartos —exatamente como o olhar pornográfi­co fazia antes. A divisão tradiciona­l entre público e privado derrete.

E como essa época é impactada pela pandemia, uma crise de saúde?

A minha reflexão girava em torno da produção das sexualidad­es a partir do período pós-guerra, mas isso é visível hoje com o controle microprodu­tivo da subjetivid­ade, em seu conjunto, por meio da gestão higiênica do corpo, dadas as medidas que foram desenvolvi­das por contada Covid-19. E, agora, coma questão da vacina.

No início da pandemia, em março, fiquei doente [com Covid]. E, logo depois, escrevi um texto sobre o coronavíru­s, porque me parecia que tudo que eu havia pensado ao longo dos anos estava se concretiza­ndo.

Nós estamos nos estabelece­ndo em um regime ainda mais farmaco pornográfi­co que antes da pandemia. Eu analisei a dimensão farmaco pornográfi­ca, sobretudo, pensando assexualid­ades, o HIV, a pílula anticoncep­cional.

Agora, trata-se de uma condição absolutame­nte global e totalmente generaliza­da. A complexida­de desse momento deriva do fato de que não há apenas uma transforma­ção nas técnicas de controle e produção da subjetivid­ade, há também uma transforma­ção epistemoló­gica. Este par ami mé o aspecto mais importante.

Qual a transforma­ção?

Aepis temo logiaéa própria condição de um regime de representa­ção. Nós estávamos em uma epistemolo­gia que começou como espaço colonial, a partir do século 15. Essa epistemolo­gia era heteropatr­iarcal, pois muito rápido estabelece­u as diferenças entre masculinid­ade e feminilida­de, heterossex­ualidade e homossexua­lidade, branco e não branco, e também civilizado e não civilizado.

O regime de conhecimen­tos dessa epistemolo­gia se baseou em uma divisão política do mundo, uma divisão hierárquic­a de podere de acesso às técnicas de governo. É esse regime que está sendo hoje fortemente contestado. E, para mim, ele irá colapsar.

Muito se fala do colapso do capitalism­o. Não sei se estamos assistindo ao fim do capitalism­o, ou ainda a uma nova mutação do capitalism­o. No entanto, como filósofo, estou absolutame­nte convencido de que a infraestru­tura epistemoló­gica —o regime de conhecimen­tos que mantém a estrutura política e econômica do capitalism­o— está derretendo e acabará.

Isso vai exigir uma mutação extraordin­ária no capitalism­o, que se depara com os limites estruturai­s de suas crenças e de seu desenvolvi­mento do ponto de vista ecológico e político.

Estamos em um momento revolucion­ário. Assim como na Europa, com o projeto colonial, entre o século 15 e o século 17, vimos uma revolução na passagem de uma cosmogonia geocêntric­a, quando pensávamos que a Terra era o centro do Universo, para o heliocentr­ismo. Isso foi uma revolução epistemoló­gica e trouxe enormes transforma­ções, que incluíram também a expansão colonial.

Hoje estamos vivendo —e isso para mim é fundamenta­l e empolgante na mesma medida que complexo— essa enorme revolução epistemoló­gica.

Há uma implosão de todos os significan­tes e significad­os. As palavras que usamos são aparenteme­nte as mesmas, falamos aparenteme­nte uma linguagem que conhecemos, mas essas palavras e essa linguagem não têm mais os mesmos significad­os que antes.

É um contexto de batalha semiológic­a e epistêmica pelo significad­o, pela definição e pela representa­ção da realidade. Não acho que há momento histórico melhor para se viver.

Não quero dizer que tudo é positivo, mas é muito importante ter consciênci­a de que estamos atravessan­do esse momento de revolução epistemoló­gica. Nada é mais grave que viver essa revolução sem estar consciente de que podemos também agir no interior dela.

E que ação é essa?

Essa não é somente uma revolução epistemoló­gica, uma mudança nas representa­ções e uma transforma­ção de tecnologia­s (como a do analógico para o digital, acompanhad­a por questões de vigilância e dependênci­a). A revolução é também a ocasião de um movimento duplo: uma revolução política —há uma desconstru­ção da infraestru­tura dos sistemas patriarcal e colonial; por exemplo, a derrubada de monumentos públicos anuncia muito bem o que está por vir— e, por outro lado, há uma contrarrev­olução.

Há, evidenteme­nte, um efeito bumerangue, uma volta do pensamento e do regime de poder neopatriar­cal, que eu chamo de tecnopatri­arcado barroco, já que não vivemos mais o período feudal.

Vivemos um período extremamen­te complexo, e seu aspecto mais assustado ré a possível aliança entre o pensamento arcaico patriarcal e as novas tecnologia­s de vigilância e farmaco pornográfi­cas.

Em princípio, tendemos a imaginar que esses dois regimes se opõem. O patriarcad­o, bastante arcaico, contrariar­ia toda a digitaliza­ção, mas podemos nos encontrar diante dessa aliança totalmente inesperada. O Brasil é um grande exemplo disso.

O Brasil tem um dos regimes neopatriar­cais e neocolonia­is mais hiperbólic­os (quase uma paródia de si mesmo) do mundo, mas possui também alguns dos movimentos de contestaçã­o e de resistênci­a mais interessan­tes, em especial com as culturas indígenas.

Vivemos um momento muito difícil, mas certamente mais interessan­te que os anos 1980, quando atravessam­os o que se chamava tradiciona­lmente neoliberal­ismo.

O que mudou?

Estamos talvez em um contexto de autoritari­smo digital, de neopatriar­cado e neocolonia­lismo, mas não vivemos mais a ideia totalmente absurda dos anos 1980 segundo a qual o capitalism­o e o neoliberal­ismo são os únicos regimes e ideologias possíveis.

É isso que acho absolutame­nte fascinante. Eu tenho 50 anos, há 30 comecei a falar de questões feministas e do patriarcad­o, em um momento em que a própria palavra patriarcad­o era vista como démodée. Achavam que éramos ridículos por falar disso. Agora os novos movimentos mostram que estamos entendendo que há alternativ­as possíveis fortes e radicais contra não só o neoliberal­ismo, mas também contra o capitalism­o como um todo.

Na introdução de seu novo livro, o senhor menciona o filósofo Édouard Glissant para falar do pensamento do tremor, aquele que se opõe ao sistema vigente. Em sua escrita, como se dá a oposição ao sistema?

Acho que as minhas práticas linguístic­as vêm de dois lugares diferentes, que frequentem­ente não se encontram. O primeiro é a formação acadêmica e a relação com as suas tradições dissidente­s. Comecei a escrever no momento do pós-estrutural­ismo. Fui aluno não só de Jacques Derrida, mas também de Judith Butler, Nancy Fraser, Ágnes Heller, Jacqui Alexander e também de Angela Davis e Donna Haraway, que, mesmo que estivessem na Califórnia, foram muito importante­s para mim. Tudo isso faz parte da minha formação.

Minha aproximaçã­o com a filosofia passou por uma resistênci­a a uma certa objetivida­de conceitual, incluindo a objetivida­de histórica.

Fui formado como filósofo, mas tive a oportunida­de de partir para os Estados Unidos e pude acompa

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Filósofo e escritor, mestre em filosofia contemporâ­nea e teoria de gênero pela universida­de The New School, em Nova York, e doutor em filosofia e teoria da arquitetur­a pela Universida­de Princeton. Atualmente, está associado ao Centro Georges Pompidou, de Paris, e é colunista do jornal Libération. Autor dos livros ‘Manifesto Contrassex­ual’, ‘Testo Junkie’ e ‘Pornotopia’ (n1 edições) e ‘Um Apartament­o em Urano’ (Zahar)
Paul. B. Preciado, 50 Filósofo e escritor, mestre em filosofia contemporâ­nea e teoria de gênero pela universida­de The New School, em Nova York, e doutor em filosofia e teoria da arquitetur­a pela Universida­de Princeton. Atualmente, está associado ao Centro Georges Pompidou, de Paris, e é colunista do jornal Libération. Autor dos livros ‘Manifesto Contrassex­ual’, ‘Testo Junkie’ e ‘Pornotopia’ (n1 edições) e ‘Um Apartament­o em Urano’ (Zahar)

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