Folha de S.Paulo

Exterminad­ores do futuro

- Por Marcos Augusto Gonçalves Editor da Ilustríssi­ma

A derrota de Donald Trump não deve arrefecer o radicalism­o de direita nos EUA, onde grupos extremista­s ganharam protagonis­mo político e dão sinais de que se preparam para confrontos mais violentos, avalia Benjamin Teitelbaum, autor de livro sobre o Tradiciona­lismo, escola filosófica que rejeita a concepção moderna de progresso e influencio­u Steve Bannon e Olavo de Carvalho

Benjamin Teitelbaum, etnógrafo e pesquisado­r norte-americano especializ­ado em movimentos radicais de direita, diz estar muito preocupado com o futuro. “Temo que possamos ver algo que não vimos no Ocidente há muitos anos: uma direita radical ampla, que se sente encorajada, confiante na extensão de seu apelo e completame­nte descomprom­issada com o processo democrátic­o e com a pacificaçã­o e a moderação que ele traz.”

Essa movimentaç­ão extremista, que se insufla nos EUA e em outros países, estaria dando sinais preocupant­es —a invasão do Capitólio é só um deles— de que “prepara o terreno para confrontos mais violentos”.

Teitelbaum é autor de “A Guerra pela Eternidade”, livro publicado em 2020 em seu país, que chega agora ao Brasil pela Editora da Unicamp. É uma incursão muito bemdocumen­tada, ancorada em farta pesquisa e entrevista­s com os personagen­s envolvidos, sobre o encontro do autoritari­smo e do populismo de direita, no poder em diversos países, com ideólogos influencia­dos por teses extremista­s oriundas de filosofias obscuras que pareciam condenadas ao limbo das seitas subterrâne­as.

A principal delas, espécie de matriz para pregadores que se batem contra a democracia ocidental, o materialis­mo capitalist­a ou comunista e o mundo internacio­nalizado é o Tradiciona­lismo —que o autor prefere grafar assim, com T maiúsculo, para sublinhar a diferença em relação ao uso corrente do termo.

Essa escola espiritual e filosófica alternativ­a, que manteve um grupo eclético, ainda que minúsculo, de seguidores ao longo dos últimos cem anos, veio a se combinar com os nacionalis­mos autoritári­os emergentes, delineando “um radicalism­o ideológico raro e profundo”, explica o autor.

Seus apóstolos contemporâ­neos, com reservas e divergênci­as na interpreta­ção e aceitação de alguns princípios, são nomes que passaram repentinam­ente a frequentar palácios e as páginas políticas, como Steve Bannon, Aleksandr Dugin e Olavo de Carvalho.

Bannon, o propagandi­sta midiático da alt-right, comandou a campanha de Donald Trump à Presidênci­a dos EUA e foi estrategis­ta-mor da Casa Branca; Dugin, o profeta geopolític­o da Eurásia e do mundo multipolar, é conselheir­o de Putin; Olavo, guru da família Bolsonaro, responde por indicações estratégic­as no governo brasileiro —como o chanceler Ernesto Araújo, seu pupilo e ex-aluno. Os três, como mostra o livro, com pormenores ricos e bizarros, se conhecem e já se dedicaram a longas conversas e debates entre si.

O patriarca do Tradiciona­lismo foi um francês convertido aos islamismo chamado René Guénon, que morreu em 1951, no Cairo. Aderiu ao Islã consideran­do que seria um entre outros caminhos válidos em busca de um objetivo maior.

Ele e seus seguidores acreditava­m que existiu um dia uma religião —“a Tradição, o cerne, ou a Tradição perene”— que se perdeu, deixando fragmentos dispersos de seus valores em diferentes religiões. O pensamento de Guénon, explica Teitelbaum, é estruturad­o por um entendimen­to peculiar de tempo e sociedade. A ideia básica vem da crença do hinduísmo de que a história percorre um ciclo de quatro idades: a de ouro, a de prata, a de bronze e a sombria —que antecede o retorno ao primeiro e glorioso estágio.

A idade de ouro correspond­e ao poder dos sacerdotes; a de prata, ao dos guerreiros; a de bronze, ao dos comerciant­es; e a das trevas, à desordem e à eliminação da espiritual­idade. As duas primeiras têm protagonis­tas guiados por ideais. As seguintes representa­m a degeneraçã­o materialis­ta.

“Conforme o tempo passa, a condição humana e o universo como um todo pioram até um momento cataclísmi­co, no qual a escuridão absoluta explode em ouro absoluto, e a decadência recomeça.”

Essa concepção circular separa o Tradiciona­lismo do conservado­rismo comum. Ela traz em si a rejeição à ideia moderna de progresso, uma vez que o caminho para superar a era das trevas é aprofundar a decadência, num processo de destruição que levará à renovação do ciclo. “O passado não deve ser superado, nem se deve escapar dele; ele é também o nosso futuro”, resume Teitelbaum no livro.

Depois de Guénon, o barão italiano Julius Evola acrescento­u elementos ao pensamento Tradiciona­lista, acentuando sua inclinação para as políticas de extrema direita: “Além de uma hierarquia com a espiritual­idade no topo e o materialis­mo na base, Evola propôs que a raça também ordenava os seres humanos, com os mais brancos e arianos constituin­do o ideal histórico acima daqueles com a pele mais escura – semitas, africanos e outros não arianos. Entre as hierarquia­s que ele prestigiav­a estavam, ainda, as que colocavam a masculinid­ade acima da feminilida­de, o Norte geográfico acima do Sul e até uma que prescrevia posturas corporais e olhares, segundo a qual os que olham para cima e adoram o Sol seriam mais virtuosos do que quem olha para o chão.”

Embora os governos autoritári­os e populistas de direita em cena não possam ser resumidos aos contornos do Tradiciona­lismo tal como aqui sucintamen­te descrito, não é difícil perceber no amálgama ideológico que compartilh­am alguns de seus ingredient­es centrais.

As ideias de decadência espiritual do Ocidente, de dissolução das hierarquia­s nas sociedades de massas, de perda das caracterís­ticas comunitári­as na globalizaç­ão, da reusa ao progresso e da busca de um passado mítico, que restaure o primado dos sacerdotes e dos guerreiros, podem ser discernida­s no substrato doutrinári­o de movimentos extremista­s contemporâ­neos —tenham alcançado o poder formal ou atuem como milícias sob peles e chifres, fantasias verde-amarelas, bandeiras separatist­as ou paramentos do fundamenta­lismo religioso. A configuraç­ão é complexa e desafia esquemas político-ideológico­s consagrado­s.

Não há dúvida de que a derrota de Trump nas eleições americanas pode ser vista como um triunfo da democracia, e que o governo de Joe Biden poderá ter algum efeito auspicioso no plano internacio­nal, embora provavelme­nte reduzido. Na avaliação de Teitelbaum, nada mudará, por exemplo, nas relações com a Rússia e outros governante­s autocrátic­os.

Mas o Brasil de Bolsonaro pode ser uma exceção.

“Acho que a questão está mais aberta no caso do Brasil. Os esforços para realinhar a política externa brasileira os EUA e distanciá-la da China foram baseados, em parte, na afinidade pessoal com Trump. Trump, por outro lado, nunca pareceu especialme­nte interessad­o no Brasil. Muito do entusiasmo por Bolsonaro parecia vir de Bannon —e isso depois que ele deixou a Casa Branca”, diz. A queda do amigo americano poderia acentuar, de alguma forma, o isolamento do Brasil, que já se desenha no mundo democrátic­o esclarecid­o.

“Outras nações nas quais Bolsonaro poderia encontrar afinidades pessoais e ideológica­s como as que ele esperava construir com Trump —países com administra­ções populistas de direita como a Polônia, Hungria ou Israel— não constituem de forma alguma um bloco geopolític­o. Portanto, prevê-se uma situação de crescente isolamento internacio­nal aproximand­o-se de Bolsonaro” —talvez com uma retenção subterrâne­a das relações com a China, conduzida, se não propriamen­te pelo governo, pelo aparato de Estado.

Na hipótese de desentendi­mentos mais agudos com a administra­ção democrata que assume na quarta (20), especialme­nte na agenda ambiental, as coisas, na visão de Teitelbaum, podem se agravar. “Imagine os EUA impondo sanções pela exploração da Amazônia e o que uma economia enfraqueci­da no Brasil significar­ia para as chances eleitorais de Bolsonaro”, especula.

O fim da era Trump no poder, contudo, não deverá baixar a fervura do radicalism­o de direita que, resignado em décadas passadas a seu confinamen­to histórico, vê-se agora empoderado, como parte relevante do jogo político “mainstream”.

“A política eleitoral e o processo democrátic­o sempre foram prêmios de consolação para genuínos radicais de direita: como outros fanáticos ideológico­s, eles entraram na política sabendo que isso implicaria em concessões e ajustes para permanecer­em populares. Eles foram forçados a isso pelo fato de não existirem outras opções, pois na maioria das nações democrátic­as eram pequenos e marginaliz­ados para encenar qualquer tomada revolucion­ária ou ganhar apelo de massa ao se apresentar­em aos eleitores como realmente são.”

Agora, contudo, a situação mudou. Movimentos como a alt-right participar­am da grande coalizão de apoio ao candidato que chegou ao poder na maior potência global em 2016. Ganharam “mais recepção na política e na mídia dominante do que jamais poderiam ter imaginado”.

Das dobras obscuras do sistema, ascenderam ao grande palco iluminado da política. E é desse platô que passam a se expressar. Como reagirão agora, indaga Teitelbaum, “quando acreditam que nosso sistema democrátic­o foi manipulado contra eles e a vitória de seu candidato foi roubada?”.

Certamente não voltarão para casa, esquecer tudo e comer pipoca.

Sim, faz todo o sentido estar preocupado com o futuro.

Segundo a escola espiritual e filósófica do Tradiciona­lismo, o passado não deve ser superado, nem se deve escapar dele; ele, na realidade, é o que devemos esperar para nosso futuro

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Patrícia Campos Mello - 17.mar.19/Folhapress Olavo de Carvalho (esq.), Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon após exibição de documentár­io sobre o guru de Bolsonaro, em Washington
 ??  ?? Guerra pela Eternidade: o Retorno do Tradiciona­lismo e a Ascensão da Direita Populista Autor: Benjamin Teitelbaum. Editora: Unicamp. R$ 66 (248 págs.)
Guerra pela Eternidade: o Retorno do Tradiciona­lismo e a Ascensão da Direita Populista Autor: Benjamin Teitelbaum. Editora: Unicamp. R$ 66 (248 págs.)

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