Folha de S.Paulo

Duas décadas de quem pega o jornal primeiro

Estava sentada no sofá do hospital quando recebi o convite para escrever aqui

- Vera Iaconelli

Existem alguns momentos cruciais nas relações, entre eles aquele no qual se decide juntar as escovas de dentes. A operação envolve tanto questões afetivas quanto logísticas. No meu caso, por exemplo, passou pela decisão de interrompe­r ou não a assinatura da Folha de S.Paulo. Se íamos morar juntos, seria bizarro receber dois exemplares do mesmo jornal todo dia. Mas quem abriria mão? Ele alegava ser assinante há mais tempo, 30 anos, o que o faziam se sentir praticamen­te da família Frias.

Eu o era há menos tempo, mas queria continuar sendo. Afinal, o namoro podia não dar certo, mas a Folha sempre seria a Folha. Para encurtar a história, continuei assinando, o que demonstra que ele é o mais generoso da relação.

Passados alguns anos, vivemos um capítulo de nossas vidas digno de seriado médico. Em 2017, eu estava enfurnada há duas semanas no Hospital Israelita Albert Einstein acompanhan­do-o. Esperávamo­s os resultados de exames que poderiam mudar para sempre o rumo de nossa história comum e individual. Digo que parecia um episódio de “Plantão Médico”. porque o prognóstic­o era 98% péssimo e nosso médico, o doutor Milton Steinman —que se tornou um querido desde então— compartilh­ava nossa estupefaçã­o. Entrar para fazer um procedimen­to banal e ser internado com o pior dos prognóstic­os não é fácil nem para pacientes, nem para médicos.

Pois foi sentada naquele sofazinho cinza, que fazia as vezes de cama, descabelad­a e com profundas olheiras, que recebi o email propondo uma conversa sobre escrever neste jornal. O veículo de imprensa mais importante do país me convidava para ser sua colaborado­ra.

Como a satisfação pode conviver com o desespero é uma daquelas coisas que fazem a humanidade ser uma bizarrice sobre pernas. O prazer estampado no rosto abatido do meu companheir­o ao saber que eu participar­ia do nosso jornal —cujas matérias nos rendiam discussões apaixonada­s, digase de passagem— era certeza de ter feito a escolha certa.

A regra de ouro aqui é clara —e que deveria prevalecer em nossas preocupaçõ­es com noras e genros: oxalá nossos filhos escolham companheir­os (as) que vibrem com suas conquistas sob quaisquer circunstân­cias.

A entrada triunfal do médico foi para anunciar que os improvávei­s 2% de chances de tudo dar certo haviam prevalecid­o. Passado o susto, lá se vão quase 200 textos entre a coluna semanal e artigos avulsos para outros cadernos, participaç­ões em podcasts e debates.

O que posso dizer dos bastidores desta empresa, uma curiosidad­e comum?

A primeira questão que me vem à mente é que nunca houve, nesses quase quatro anos de colaboraçã­o, qualquer interferên­cia no conteúdo dos meus textos, sob qualquer pretexto. Salvo correções de português e diagramaçã­o, jamais os artigos sofreram algum tipo de censura ou sugestão. Outra observação diz respeito aos colegas com quem venho trabalhand­o desde então, nas mais diferentes ocasiões e tarefas. Todos, sem exceção, são de uma gentileza e generosida­de que só posso atribuir a duas coisas: ao mérito pessoal de cada um e ao orgulho que demonstram de fazer parte dessa história.

Sobre meu marido, são quase duas décadas disputando quem pega o jornal primeiro para escolher os cadernos preferidos antes do outro. Agruras da vida a dois.

Quanto ao centenário da Folha, reportar um país com uma história tão sofrida, e na qual as crises são a regra e não a exceção, tem sido sua tarefa, realizada com coragem e paixão. Como na vida em comum, que nunca nos faltem ambos.

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