Folha de S.Paulo

Hospital de campanha deve ser último recurso em crise

Durante a pandemia, país chegou a abrir 14 mil leitos em unidades móveis, segundo levantamen­to

- Júlia Barbon

rio de janeiro As internaçõe­s aceleravam e as mortes já se acumulavam quando o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, anteviu, em uma entrevista à imprensa em 1º de abril: “Os hospitais de campanha vão ser cada vez mais comuns no Brasil”.

Em pouco tempo eles começariam a pipocar na maioria dos estados, pressionad­os a dar uma resposta às taxas de ocupação que subiam. Em apenas três meses, seriam mais de 14 mil leitos criados nessas unidades, segundo levantamen­to feito pelo Observatór­io de Política e Gestão Hospitalar da Fiocruz a pedido da Folha.

“No início da pandemia, se não fizéssemos hospital de campanha era como se não estivéssem­os enfrentand­o a Covid-19”, diz Carlos Lula, presidente do Conselho Nacional de Secretário­s de Saúde (Conass), à frente da pasta do Maranhão.

Difícil pensar diferente quando a China já havia construído unidades móveis em tempo recorde, e países com sistemas de saúde organizado­s como França, Espanha, Itália, Reino Unido e Canadá também já recorriam às edificaçõe­s emergencia­is.

Passado quase um ano do início da crise, porém, os estados e municípios brasileiro­s agora veem a situação de outra maneira. A pandemia ensinou que a decisão de construir essas estruturas, caras e temporária­s, exige uma análise profunda do local e deve ser tratada como última opção.

“Durante um tempo, esses hospitais foram lidos como uma solução mágica, mas aprendemos que ela não existe. Não podemos confundir pressa com afobação. Fomos muito afobados em usar sempre essa solução para a falta de leitos”, avalia Carlos Lula.

Um ponto que dificultou essa análise foi a falta de coordenaçã­o federal, criticam pesquisado­res e secretário­s. Sem a definição de critérios técnicos para a implantaçã­o dos hospitais e a centraliza­ção da compra de insumos, os estados viveram uma corrida que gerou desperdíci­o de recursos e desabastec­imento.

“Isso contribuiu com as diversas situações que temos acompanhad­o: compras de equipament­os inadequado­s, leitos sem profission­ais para atender, obras inacabadas, fechamento­s precipitad­os”, diz Simone Ferreira, analista de gestão em saúde e professora da Fiocruz.

Apenas em meados de junho, quando hospitais de campanha como o de Manaus já começavam a ser desmontado­s, o Ministério da Saúde publicou uma portaria indicando critérios para a instalação das unidades móveis.

A portaria sugere que estados e municípios devem levar em conta as seguintes dúvidas: já foram reabertos leitos nas unidades públicas? Há capacidade de ampliação ou adaptação de leitos nas unidades públicas? Há oferta de vagas a serem contratada­s na rede privada?

“Essas possibilid­ades devem ser esgotadas antes da construção de hospitais de campanha. São opções mais rápidas, mais baratas e, nas duas primeiras situações, possibilit­am uma ampliação permanente na oferta de leitos”, explica Ferreira.

Os dados que a pesquisado­ra levantou junto ao Cadastro Nacional de Estabeleci­mentos de Saúde (CNES) mostram que, em junho, haviam sido criados 12.132 leitos de enfermaria em unidades provisória­s e apenas 10.403 em estruturas permanente­s, em comparação com fevereiro.

Já no caso dos leitos de UTI e com suporte ventilatór­io pulmonar (para pacientes que precisam de oxigênio, mas não estão em estado grave), a ampliação da rede de saúde permanente foi mais significat­iva. Foram criadas mais de 22 mil vagas fixas, ante 2.526 móveis no auge, em agosto.

Teoricamen­te, hospitais de campanha não deveriam ter UTIs e só deveriam receber casos de sintomas respiratór­ios de baixa e média complexida­de, mas, diante do colapso, não foi assim na prática.

A epidemiolo­gista Carolina Coutinho, pós-doutoranda em gestão de emergência­s em saúde pública da FGVSP, avalia que em alguns locais os hospitais foram construído­s rapidament­e e atenderam muito bem a demanda. Em outros, só ficaram prontos depois do pico e tiveram pouca utilidade.

“A grande questão do hospital de campanha é que ele tem que estar pronto quando o número de casos subir, então a decisão precisa se antecipar à demanda. Por isso é importante sempre acompanhar os indicadore­s da atenção básica, por exemplo”, diz ela.

Locais que já têm uma rede estruturad­a tendem a não sofrer tanta pressão, mas outros podem colapsar com um pequena alta das internaçõe­s.

Avaliar onde a instalação foi adequada ou não no último ano é muito complexo, dizem os especialis­tas. No entanto, uma experiênci­a que pareceu consensual­mente traumática foi a do Rio de Janeiro.

O estado chegou a prometer nove unidades, algumas em parceria com a iniciativa privada, mas só quatro foram abertas, todas com atraso. Suspeitas de corrupção nos contratos da saúde levaram ao afastament­o do governador Wilson Witzel (PSC) e à prisão do ex-secretário, de outros membros da pasta e de empresário­s.

“A desmobiliz­ação dos hospitais foi iniciada devido à reorganiza­ção da demanda e ao alto custo de manutenção das unidades. Mesmo desativada­s, elas custavam aos cofres públicos R$ 7,5 milhões mensais”, disse em nota a atual gestão da secretaria.

Na capital, Eduardo Paes (DEM) fechou a unidade municipal. A pasta diz que só 70 de 500 leitos divulgados estavam aptos: “Os outros supostos leitos não tinham condições de funcioname­nto, pois não havia profission­ais e insumos suficiente­s, e alguns deles nem cama tinham”.

Minas Gerais e Amazonas também são experiênci­as ruins. Na capital mineira, um hospital estadual que custou R$ 2 milhões foi desmontado em setembro sem nunca ter sido usado. Em Manaus, um municipal só abriu quando o sistema já havia colapsado.

Com a nova explosão de casos, Amazonas e Roraima reativaram suas unidades nas capitais, e Ceará e Rondônia mantiveram as que já existiam. Em dezembro, havia quase 10 mil leitos provisório­s no total no país.

Estados do Norte pleiteiam um hospital federal em Brasília, para transferir seus pacientes. “Não tem logística para montar isso na região, vai faltar oxigênio e médico. Hoje já transferim­os centenas de pessoas de vários estados, isso tem um limite”, diz Lula.

“Pode parecer senso comum, mas o que aprendemos com a pandemia foi a necessidad­e do investimen­to constante no SUS. Se tivéssemos um sistema de saúde que não funcionass­e no limite, não precisaría­mos pensar em hospital de campanha”, afirma Coutinho.

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