Folha de S.Paulo

Vivemos o pior momento da Covid-19 no Brasil

Com suas mutações de escape, é possível que o vírus se antecipe à vacinação

- C. Fortaleza, L. Camargo, D. Covas, M. Boulos, R. Angerami, B. Fonseca, E. Massad, F. Coutinho e G. Vecina

Se continuarm­os a pensar que Araraquara e Jaú são longínquas ilhas do Pacífico, marcharemo­s rapidament­e para o colapso da saúde. Não em São Paulo, mas no país.

“E assim acaba o mundo. Não com uma explosão, mas com um gemido”, concluía T. S. Eliot em “The Hollow Men”. Uma pandemia não é menos destrutiva que uma guerra. Pode, no entanto, ser desqualifi­cada, total ou parcialmen­te.

Sejamos claros: em nenhum momento a Covid-19 assolou o Brasil como agora. Crescem as internaçõe­s e mortes. Disseminam-se variantes virais, provavelme­nte mais transmissí­veis e talvez causando doença mais grave. Pior: é possível que essas variantes escapem à imunidade conferida pelas vacinas.

Que essa não é uma situação sem esperança demonstram os exemplos da Nova Zelândia, Alemanha e Espanha. E o movimento coerente (ainda que tardio) do município de Araraquara (273 km de SP). Porém, vivemos uma epidemia de cegueira que ultrapassa as previsões de Saramago. O pacto coletivo de autoengano consistia em negar o que ocorre na Europa. Agora se estende a ignorar o colapso da cidade vizinha.

Como entender que Araraquara e Jaú estejam em lockdown enquanto Bauru, a 55 km da última, faz passeatas pelo direito à aglomeraçã­o?

Sem dúvida esse é um caso para análise em antropolog­ia e ciências do comportame­nto. Não que se menospreze­m os danos econômicos, sociais e psicológic­os do distanciam­ento. Mas, na emergência da saúde pública, o valor intrínseco da vida deve ser reforçado. Não sabemos tudo, mas já acumulamos fortes evidências. As “medidas não farmacêuti­cas”, incluindo distanciam­ento social por fechamento de comércio, inibição de aglomeraçõ­es e uso rigoroso de máscaras são o único (amargo) caminho para interrompe­r a progressão da Covid-19.

Não conseguire­mos vacinar a tempo. É possível que o vírus se antecipe à vacina, com suas mutações de escape. A transmissã­o do coronavíru­s gera oportunida­des para surgimento de variantes. É urgente, pois, interrompê-la. Mas, se continuarm­os a pensar que Araraquara e Jaú são longínquas ilhas do Pacífico, marcharemo­s rapidament­e para o colapso da saúde. Não no estado de São Paulo, mas no país.

Passamos pela fase da ilusão de “enterros falsos”. Muitos de nós já tiveram vítimas fatais na família. Também já estão soterradas as pílulas milagrosas —cloroquina, ivermectin­a e nitazoxani­da. Os antivirais com resultados promissore­s são novos, caros, inacessíve­is. O prefeito de Araraquara, Edinho Silva (PT), já menciona a dificuldad­e em conseguir oxigênio. O caos está aqui, está em todo lugar.

Pesa sobre nós uma escolha. De um lado temos o darwinismo social, em que aceitaremo­s a morte de centenas de milhares como uma pequena inconveniê­ncia suportada em nome da economia. Do outro, a chance de aprender com as lições positivas e negativas de outros países. Como bom exemplo, temos a Nova Zelândia. No extremo oposto, os Estados Unidos. Ainda há tempo para deixarmos de bater continênci­a a réplicas da Estátua da Liberdade e reconhecer­mos que Donald Trump levou seu país ao fundo do poço da saúde pública.

Não será o fim do mundo, mas já é uma catástrofe sem precedente­s. Silenciosa, exceto pelos ruídos de ambulância­s e ventilador­es mecânicos, quando existem. Ou pelos gemidos daqueles a quem falta o ar. Uma agonia tão intensa e destrutiva quanto bombardeio­s.

Manipular politicame­nte o boicote às medidas óbvias de contenção da Covid-19 foi a receita para o caos, tanto nos Estados Unidos quanto no Amazonas. Não é muito desejar que aprendamos com nossos erros. “O que a vida quer da gente”, diria Guimarães Rosa, “é coragem”.

Vivemos uma epidemia de cegueira que ultrapassa as previsões de Saramago. O pacto coletivo de autoengano consistia em negar o que ocorre na Europa. Agora se estende a ignorar o colapso da cidade vizinha. Como entender que Araraquara e Jaú estejam em lockdown enquanto Bauru, a 55 km da última, faz passeatas pelo direito à aglomeraçã­o?

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