CHICANAS AJUDARAM SAMUEL KLEIN A ELUDIR JUSTIÇA
Denúncia de crimes sexuais mostra a engrenagem que leva à impunidade
Caso de irmãs que acusam fundador das Casas Bahia de exploração sexual expõe como acusações se dissipam; acima, casa da família, no Guarujá, foi palco de alegadas orgias
são paulo “Ô, Ô, Ô Ô, o Samuca é o terror...”, repetem em coro meninas na faixa de dez anos em vídeo registrado em 1994. O dono da festa aparece em meio a dezenas de garotas de biquíni e fantasias. Entre as “samuquetes” está Vanessa Neves Meyer, que se identifica como uma loura de cabelo Chanel ao fundo, à época com 19 anos.
Vanessa diz ter começado a se relacionar com Samuel Klein (1923-2014), o fundador das Casas Bahia, aos 12.
As cenas são do aniversário de 71 anos do mascate que virou rei do varejo, um judeu polonês sobrevivente do Holocausto que emigrou no começo dos anos 1950 para o Brasil, onde construiria um império de 500 lojas. Elas vieram a público em reportagem da Agência Pública em 15 de abril, quase três décadas depois da celebração ao “tio das Casas Bahia”.
A biografia de Klein, morto aos 91 anos em 2014, sofre abalo com o testemunho de dezenas de mulheres que alegam ter sido exploradas sexualmente na infância e adolescência. Um esquema de aliciamento confirmado por exfuncionários, seguranças, taxistas, vizinhos e advogados.
A Folha rastreou sete processos cíveis e três criminais contra o fundador das Casas Bahia por exploração e abusos sexuais. Só uma ação por danos morais aguarda julgamento de recurso especial junto ao Superior Tribunal de Justiça.
Um inquérito e duas queixas-crimes foram arquivados, sem que o acusado nem sequer prestasse esclarecimento sobre denúncias de estupros contra meninas.
“Uma parente me levou nas Casas Bahia. Ela disse que Samuel ia apalpar meu peito e eu ganharia um dinheirinho. Uma semana depois, fomos para o quartinho do lado do escritório e o ato aconteceu. Era virgem. Saí chorando. Ele me deu uns R$ 3.000”, reafirma Vanessa, sobre denúncias feitas em uma ação cível arquivada após acordo.
Vanessa, 46, recebeu a Folha na casa convertida em pousada em Monguaguá, que diz ter comprado com os R$ 160 mil recebidos pelo último dos quatro acordos extrajudiciais feitos com o patriarca Klein em troca de silêncio.
O mesmo valor foi pago às duas irmãs —a do meio, hoje com 43 anos, não quis dar entrevista—, e Karina Lopes Carvalhal, 40. A primogênita apresentou a mais nova para Klein. “Eu tinha 15 anos quando levei a Pri, que estava com 12. Quando ela fez 15, também levou a Karina, então com 9 anos.”
Segundo as irmãs, a pirâmide era financiada pelo dono das Casas Bahia em troca de favores sexuais, remunerados em dinheiro, recebido na boca do caixa, ou por vales de cestas básicas, brinquedos, eletrodomésticos e até carros.
“Na primeira vez, fiquei com medo, mas saí contente. Ganhei um tênis”, relata a caçula. A loura de olhos verdes passaria a bater ponto semanalmente no escritório de Klein.
Ela conta que deixou de ir à escola e passou a consumir crack. “Pegava a grana com ele e sumia de casa para não explicar de onde vinha o dinheiro. Quando ele me dava uma cesta básica, eu dizia que foi dada por um tio de uma amiga.”
Ela aumentava os ganhos, arregimentando colegas pobres do ABC e da Baixada Santista, como a prima N.S.S, 11. “O titio vai te dar uma bicicleta”, prometeu Klein, segundo relato à Folha da empregada doméstica, hoje com 37 anos.
As primas aparecem em uma foto ao lado do empresário, no deque de um iate no Guarujá. As imagens foram apresentadas como provas em processo por danos morais ainda em curso contra o espólio de Samuel Klein e as Casas Bahia, além de testemunho da vítima, em uma carta, e material colhido em ação movida por outra menor.
A ação cível de 2012 foi julgada improcedente na primeira e na segunda instâncias. Em 19 de março de 2019, a 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de SP negou pedido de suspensão do curso do prazo prescricional pela impossibilidade do exercício do direito da ação da autora, alegada pelos advogados da vítima.
“É uma batalha jurídica grande pela prescrição e pelo poder econômico do agressor”, diz Antônio Sérgio de Aquino, advogado da doméstica, que já atuou em outras cinco ações contra Klein, todas julgadas improcedentes por prescrição. “Dependemos da sensibilidade do juiz para a tese de incapacidade parcial. A vítima não tinha condições psicológicas para ingressar antes com uma ação contra alguém tão poderoso.”
A defesa de Klein sustentou que, se os fatos fossem verídicos, a suposta vítima não teria levado tanto tempo para procurar a Justiça. Sugere tentativa de enriquecimento ilícito e litigância de má-fé. “É lamentável que a autora não hesite em conspurcar a memória de um empresário aplaudido.”
Com aparato de bons advogados, Klein nunca prestou contas à Justiça. Um exemplo de como se valeu de chicanas legais para nem sequer depor está em um inquérito que tramitou na 1ª Vara Criminal do Guarujá, aberto em 2006 para apurar denúncia de que T.A.C, filha de uma caseira, teria sido abusada em 2000, aos 12 anos.
“Embora a conduta criminosa do réu tenha ficado demonstrada, em razão de suas manobras protelatórias e uma manifesta lentidão na apuração dos fatos, a Justiça rendeu-se à declaração de prescrição”, conclui a promotoria em março de 2011.
A denúncia ao Conselho Tutelar do Guarujá foi feita em maio. Em agosto, Klein seria chamado a depor. Seu advogado, João da Costa Faria, declarou que o cliente estava enfermo, conforme atestado de um geriatra. O mesmo aconteceu em 25 de março de 2008. Procurado pela Folha, declarou que “o escritório não comenta processos de seus clientes”.
Por quase quatro anos, várias cartas precatórias foram expedidas para que fossem ouvidos em São Caetano o réu e as testemunhas-chave, entre elas Lúcia Amélia Inácio, misto de secretária e enfermeira, descrita na biografia de Klein como responsável pelo setor de benefícios das Casas Bahia.
Às vésperas da prescrição, em 8 de novembro de 2010, o delegado responsável voltou a protestar. Para réus com mais de 70 anos, o prazo para início da ação penal contava pela metade. No caso, em vez de 20 anos, a prescrição ocorreu 10 anos após o ato criminoso.
Os fatos narrados no inquérito foram testemunhados na casa da praia da Enseada, no Guarujá, um dos cenários das festas promovidas por Klein.
A casa de praia é um imóvel discreto com muro baixo e fachada de vidro e madeira. Em torno da piscina com um K gigante desenhado no fundo, Klein reunia 30, 40 garotas em fins de semana. “Na parte de trás da casa, ficava o motelzinho dele”, explica Vanessa.
O esquema teria movimentado milhões em agrados e festas, mas também em acordos para acobertá-lo. À medida que as irmãs se tornavam adultas, passaram a entender que poderiam se enquadrar como vítimas de exploração sexual e estupro de vulnerável.
A partir de 2009, o Código Penal, em seu artigo 217-A, prevê pena de reclusão de 8 a 15 anos por conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos. É também crime induzir ou atrair à prostituição menores de 18 anos.
“Quando eu comecei a visitar o Samuca, eu era uma criança que queria dinheiro para comprar lanche”, recordase Vanessa. Ela relata ter visto uma menina de seis anos, a mesma idade de sua filha na época, na antessala esperando para ser recebida por Klein.
“Ele chegou a pedir para eu levar minha filha adolescente. Ele era doente para ter feito isso com tantas meninas.”
A dependência financeira aumentava e cresciam as humilhações, dizem. “Ganhamos um Gol cada uma. Aí começou a ficar uma coisa mais financeira mesmo. A gente achava que ele devia isso pra gente”, diz Karina. Ela exibe o documento do veículo ano 1999, transferido para o nome dela em 14 de janeiro de 2002 pela Casa Bahia Comercial Ltda.
Um fim de semana em Angra dos Reis podia render R$ 5.000 para cada escolhida. “Ele dava R$ 1.000 quando subíamos no helicóptero e R$ 2.000 no final. Lá, ficava cantando no videoquê e jogava dinheiro pra cima”, recorda-se Vanessa.
O trio resolveu coletar fotos, vídeos e documentos para provar que faziam parte do “harém do Samuca”. Montaram dossiê doméstico, com o qual municiaram advogados.
Se na infância e na adolescência as irmãs afirmam terem vendido seus corpos, adultas confessam ter negociado o silêncio. “A gente arrumava advogado, Samuel chamava a gente nas Casas Bahia e fechava acordo ali”, afirma Vanessa.
Na primeira negociação, em 1996, as três saíram da reunião com um cheque de R$ 10 mil cada uma. “Os advogados ficaram com parte de nossas provas, entre elas uma fita cassete que entregaram para o Samuel”, recorda-se Karina.
A estratégica jurídica era evitar processo criminal até a prescrição. “Nenhum advogado que arrumamos foi a favor da gente. Não chegamos a ir para a Justiça pra valer.”
Elas guardam em uma pasta documentos como uma carta datilografada, de 30 de julho de 2007, exemplo de correspondência trocada quando tentavam novo acordo.
“Querido amigo de infância Samuca... Sabemos que prescreveu, mas nossos advogados nos orientaram a denunciá-lo ao Ministério Público, a abrir inquérito policial e levar ao conhecimento público. Mostrar quem é o cidadão benemérito de São Caetano do Sul”.
Encerram a carta com pedido de R$ 150 mil para cada uma. “Os advogados dele diziam que era melhor assinar acordo, senão ia ficar pior se nos processassem por extorsão”, diz Karina. “Os nossos também diziam que era melhor do que não receber nada.”
Segundo elas, em 2010 foi firmado o último acordo, que teria chegado a R$ 1 milhão e levou ao arquivamento do processo por danos morais na 1ª Vara Cível de São Caetano — valor longe, segundo elas, de reparar o dano de carregar o carimbo de “samuquetes”.
“Sem estudo e emprego não tive muita saída na vida”, diz Karina. Faltam perspectivas e sobram julgamentos em uma sociedade machista que critica a conduta das mulheres e não a do abusador, emenda Vanessa. “Quando ficam sabendo da nossa história sempre jogam na cara, nos chamam de prostitutas e de vagabundas que gostam de velho.”
As três irmã e C.L.A, também autora da ação coletiva, teriam recebido R$ 243 mil cada uma, dos quais embolsaram R$ 160 mil e pagaram R$ 83 mil em honorários advocatícios, conforme recibo de 10 de novembro de 2010.
Nove anos depois, Saul Klein, 66, um dos quatro filhos de Samuel, recorreria ao mesmo expediente para evitar que acusações de crimes sexuais contra ele viessem a público. Em dezembro de 2019, o herdeiro admitiu à Justiça ter feito acordos com duas jovens que ameaçavam divulgar fotos íntimas em encontros descritos por elas como orgias em propriedades de Saul em Alphaville e Boituva.
Os vídeos gravados durante audiência no curso de uma ação por danos morais foram divulgados em 1º de maio, pelo UOL. Nos depoimentos, Saul admite que se comprometeu a pagar R$ 800 mil a cada uma em troca de silêncio.
A Folha publicou, em dezembro de 2020, a primeira notícia de que o filho do fundador das Casas Bahia foi acusado de estupro e aliciamento por 14 mulheres. A reportagem na coluna Mônica Bergamo, assinada por Bruno B. Soraggi, revelou que, a pedido do Ministério Público, a 2ª Vara Criminal de Barueri concedeu medida protetiva às vítimas.
A medida foi revogada em 23 de fevereiro. “O juiz entende que não pode privar o acusado de ir e vir, mas as vítimas estão vulneráveis. É um caso coletivo em que muitas se sentiram seguras para denunciar por causa da medida de proteção diante de um empresário poderoso”, afirma a advogada Gabriela Souza, que representa 25 jovens.
Elas relatam, segundo a peça inicial de acusação, que eram contratadas para eventos que contavam com 15 a 30 moças e tinham que se exibir de biquíni e se submeter a atos sexuais humilhantes com Saul.
“Em razão da constante exploração, da dependência econômica, do subjugo físico e da intimidação, muitas adoeceram e uma delas chegou a se suicidar”, diz Gabriela, procurada por mais de 50 jovens que teriam sido aliciadas por Marta Gomes da Silva, dona da Avlis, contratada por Saul.
“Existia a contratação de modelos para eventos e para fazer companhia ao Saul, por meio de uma empresa que selecionava”, afirma André Boiani e Azevedo, advogado do empresário. Saul é classificado como um “sugar daddy”, termo em inglês para homens que têm fetiche em sustentar financeiramente mulheres jovens em troca de afeto e sexo.
Segundo o advogado, “começaram a chover reclamações trabalhistas, cíveis, com fortes indícios de extorsão”. “Os elementos de exploração sexual são por parte da agência e não do Saul”, diz ele.
Na avalanche de denúncias e processos contra pai e filho, há casos de supostas vítimas que buscam de fato reparação e outras que usam o pano de fundo sexual para chantagem.
“A compra e venda do silêncio é uma extensão da prostituição. Além de ferir a dignidade física, a pessoa mercantiliza a própria vida”, diz Eduardo Querubim, segundo promotor de Justiça de Barueri que acompanha as investigações do caso Saul Klein.
O inquérito está sendo conduzido pela Delegacia da Mulher de Barueri. Está em fase de coleta de depoimentos, sob sigilo. “Se Samuel não tivesse morrido, ia explodir essa bomba e ele iria nos procurar e perguntar quanto a gente queria pra não falar “, conclui Vanessa. “Um dinheiro maldito.”
“Eu tinha 15 anos quando levei a Pri, que estava com 12. Quando ela fez 15, também levou a Karina, então com 9 anos Vanessa Neves Meyer
“A compra e venda do silêncio é uma extensão da prostituição. Além de ferir a dignidade física, a pessoa mercantiliza a própria vida Eduardo Querubim promotor de Justiça de Barueri
“É lamentável que a autora não hesite em conspurcar a memória de um empresário aplaudido em todo o país Defesa de Samuel Klein
“Os advogados dele diziam que era melhor assinar acordo, senão ia ficar pior se nos processassem por extorsão. Os nossos também diziam que era melhor do que não receber nada Karina Lopes Carvalhal
“É uma batalha jurídica grande pela prescrição e pelo poder econômico do agressor . Dependemos da sensibilidade do juiz para a tese de incapacidade parcial. A vítima não tinha condições psicológicas para ingressar antes com uma ação contra alguém tão poderoso Antônio Sérgio de Aquino advogado de doméstica que acusa Klein